“Conquista da paridade foi árdua para as mulheres bolivianas”: Entrevista com a pesquisadora Mariana Malheiros

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Natural de Caruaru, em Pernambuco, mas vivendo em Guarapuava, no Paraná, Mariana Rocha Malheiros é uma pesquisadora e ativista com olhos atentos para a luta das mulheres latino-americanas e caribenhas. Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea na América Latina (PPGICAL) da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), é também advogada popular, assessora parlamentar e ativista de Católicas pelo Direito de Decidir.

Agora, Mariana fornece nova contribuição para as pesquisas e lutas feministas. Fruto de sua dissertação de mestrado, a obra “Descolonização e Despatriarcalização à Plurinacionalidade e ao Bem-Viver na Bolívia: mulheres na construção de uma política feminista contra-hegemônica” foi publicada recentemente pela editora Dialética. A fim de conhecer melhor a sua pesquisa e as pautas nela abordadas, Católicas pelo Direito de Decidir realizou uma entrevista exclusiva com a autora. Confira: 


O seu livro “Descolonização e Despatriarcalização à Plurinacionalidade e ao Bem-Viver na Bolívia” foi resultado de seu mestrado. Como surgiu o interesse em estudar a realidade das mulheres bolivianas?

Primeiramente, agradeço o convite de Católicas pelo Direito de Decidir para esta entrevista. É muito bom participar de um espaço que possibilita divulgarmos nosso trabalho e o valoriza, tal como Católicas tem feito. É neste feminismo solidário que eu acredito. 

Respondendo à questão, em 2015 eu tive a oportunidade de participar do Encontro Mundial de Movimentos Populares, em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Aliás, este encontro foi um convite do Papa Francisco aos Movimentos Populares. Ali, pude conhecer o Feminismo Comunitário da Bolívia, formado por mulheres indígenas. O lema e todo o trabalho delas se baseia na ideia de que “las mujeres somos la mitad de cada pueblo” (“as mulheres são a metade de cada povo”). O mais interessante neste primeiro contato foram dois pontos: primeiro, perceber a crítica ao feminismo ocidental, no sentido de que o feminismo ocidental – principalmente a sua vertente liberal – se mostra salvacionista e universalista, com um discurso que não é capaz de abraçar a diversidade de mulheres no Sul Global, principalmente as mulheres indígenas; e, o segundo ponto, apresentar a interseccionalidade entre as lutas anticoloniais, anticapitalista, antirracistas e antipatriarcais, construindo um feminismo acessível às mulheres das camadas populares. Lendo os primeiros textos do feminismo comunitário eu pensava: “Minha mãe, uma dona de casa, seria feminista se conhecesse essas ideias”. Enfim, este primeiro encontro me impactou muito.

Contudo, por várias questões de trabalho e percursos, só ingressei no mestrado em 2019, na UNILA. Eu sabia que estudaria gênero em perspectiva anticolonial e decolonial, mas eu ainda tinha dúvidas sobre estudar Bolívia, que é um país muito complexo. Conversando com minha orientadora, Tereza Spyer, chegamos à conclusão de que seria interessante trazer essa perspectiva das mulheres bolivianas, especialmente as organizadas em movimentos populares e indígenas. Assim, veio a proposta de pensar o processo de participação destas mulheres no Processo Constituinte que a Bolívia viveu entre 2006 e 2009, e como elas conseguiram uma lei que garantisse a paridade de gênero nos Poderes do Estado. 

Você analisou como as mulheres indígenas bolivianas conquistaram a paridade em 2009, já no Estado Plurinacional. Como essa paridade tem efetivado políticas de promoção ao Bem-Viver? 

O Bem-Viver é um horizonte que muitos povos indígenas reivindicam, cada qual nas suas particularidades. Trata-se de uma resposta às noções de “civilização” e “desenvolvimento” que impactaram Abya Yala (América Latina) com a invasão europeia. A modernidade só existe porque existiu simultaneamente a colonialidade que provocou genocídios e epistemicídios. É importante frisar que não é uma negativa da tradição humanista ocidental, ou mesmo uma oposição. Pensar o Bem-Viver é possibilitar novas relações entre seres humanos e entre seres humanos e natureza. Na Bolívia, a ideia de Bem-Viver não rompeu com a lógica e a noção de desenvolvimento como única alternativa à América Latina, contudo, se buscava construir a resistência das comunidades frente o avanço do capitalismo, com qualidade de vida e fortalecimento dos vínculos locais com base na solidariedade e no respeito às inúmeras formas de vida.  

Essa construção do Bem-Viver a partir das comunidades foi possível pela Constituição Boliviana de um Estado Plurinacional, que não somente reconhece a diversidade de nacionalidades que compões a Bolívia (indígenas, afro-bolivianos/as), mas também garante a possibilidade de um Estado Intercultural, com um diálogo sem hierarquias de culturas e raças, e, a partir daí, busca novos modos de produção. Obviamente, ainda que esta perspectiva esteja positivada, ainda são muitos os desafios à construção do Bem-Viver aos homens e, principalmente, às mulheres, porque, ainda que tenha avançado muito, o Estado Plurinacional Boliviano não rompeu com o Estado Liberal e extrativista, que é a base da economia latino-americana. Contudo, as mulheres têm conseguido pautar questões como saúde, geração de renda, educação e combate à violência, e avançado especialmente no acesso à educação. No terceiro capítulo do livro, apresento dados e como essas políticas avançaram. 

Quais as principais dificuldades enfrentadas pelas mulheres indígenas bolivianas durante esse processo de conquista de paridade nas políticas públicas?

A conquista da paridade foi árdua para as mulheres bolivianas. Elas também enfrentaram racismo, machismo e as acusações próprias de homens progressistas (brancos e indígenas) de que o principal debate tinha que ser a descolonização do Estado. Não por acaso, o Feminismo Comunitário cunhou um conceito que é muito importante para minha pesquisa: o entronque patriarcal. Este conceito aponta o encontro do patriarcado indígena ancestral (especialmente dos povos andinos) com o patriarcado que invadiu Abya Yala com os europeus. O entronque patriarcal foi fatal às mulheres, especialmente às mulheres indígenas, porque potencializou as violências experienciadas. Este entronque continua acontecendo, no pacto silencioso entre homens brancos e indígenas na violência contra os corpos das mulheres. Aqui, eu dialoguei especialmente com outro movimento feminista boliviano, o grupo Mujeres Creando, que foi uma voz necessária na Bolívia e que se propunha descolonial, apontando que não se pode descolonizar sem despatriarcalizar. Por isso a proposta: descolonizar o Estado e a sociedade racista e colonialista, mas também despatriarcalizar as práticas machistas dentro do próprio espaço de construção política. 

Como as lutas e as reivindicações trazidas por essas mulheres foram recebidas pelo Estado Boliviano e demais instituições sociais, como as religiões, a imprensa etc?

Na Constituição do Estado Plurinacional, os diversos movimentos e organizações de mulheres não abriram mão da paridade nos espaços de poder. Como já apontado, foi um processo árduo em que precisaram resgatar conceitos ancestrais relacionados à ideia de complementariedade, para poder avançar. Contudo, conseguiram garantir a paridade que funciona com muitas contradições. O Legislativo consegue alcançar a paridade entre homens e mulheres, mas o Executivo não cumpre sempre – a indicação de poucas ministras é um exemplo. O Estado Boliviano tem recebido algumas pautas com maior atenção, principalmente de combate à violência, e nas áreas de saúde e educação. Porém, mulheres ainda são mais pobres que homens na Bolívia. O Estado Plurinacional não conseguiu romper com as diferenças de acesso à renda para homens e mulheres e eu entendo que este é um dos grandes desafios da Bolívia. 

Como eu pautei meu trabalho nas relações com o Estado, não consegui analisar as recepções da imprensa, religiões e outras instituições sociais. Contudo, pensando especialmente na questão religiosa, a Igreja Católica atuou diretamente contra direitos sexuais e reprodutivos. Em 2017, o Movimento ao Socialismo (MAS), partido do ex-presidente Evo Morales e do atual presidente Luis Arce, apresentou um novo projeto de Código Penal que descriminalizava o acesso ao aborto legal e seguro. Além dos casos de estupro, incesto e risco de vida materna já previstas anteriormente, a nova legislação propunha outras quatro situações de descriminalização: primeiro, aborto cometido por mulheres em situação de pobreza, segundo, por estudantes, terceiro, por mulheres que tenham sob sua responsabilidade idosos(as), pessoas com deficiência e crianças e, por fim, cometido por adolescentes. A Igreja Católica se alinhou com a direita racista e conservadora do país, criando uma opinião contrária da população à proposta. Com uma campanha contrária tão forte, o projeto de Novo Código Penal foi arquivado. Também no golpe de 2019, a Igreja Católica e sua ala conservadora teve um papel importante no apoio às elites alinhadas com o interesse externo, que buscava manter a Bolívia como um país extrativista e subdesenvolvido, especialmente às mulheres. 

O que nós, feministas brasileiras, podemos aprender com a luta feminista na Bolívia?

De tanta coisa que pude conhecer, observar as contradições e perceber o avanço das pautas dentro do proceso de cambio que vive a Bolívia, dois elementos mais me chamaram a atenção: primeiramente, a perspectiva comunitária. Somos mulheres em relação à comunidade em que estamos inseridas e é a partir desta comunidade que nos construímos, cometemos erros e avançamos. Os processos de transformação precisam ser horizontais: as comunidades precisam ser escutadas e precisam dialogar para chegar em processos de transformação. Isto é algo muito forte na Bolívia, ainda que haja muitas contradições nesses discursos (eu falo melhor sobre isso especialmente ao tratar do Golpe de 2019).

Outra questão que realmente me chamou a atenção é o rompimento explícito com essa noção salvacionista da política, especialmente nas figuras masculinas. As mulheres, muito mais do que os homens, estão construindo caminhos fora dessa ideia liberal de política, baseada em acordos e figuras messiânicas. E essa crítica é muito interessante, pois é para a direita e a esquerda, que continua com suas figuras masculinas, salvadoras, que irão resolver todos os problemas. O principal convite é buscar construir uma política horizontal e solidária, de responsabilidade e cuidado de todos e todas, sem idealizar esse processo, sabendo que é um caminho árduo e difícil, repleto de contradições. Isso fica evidente na própria organização das mulheres, que também realizam muitas disputas entre si. Porém, é muito forte essa dimensão de buscar novas alternativas políticas que promovam participação efetiva. 


MALHEIROS, Mariana Rocha. Descolonização e Despatriarcalização à Plurinacionalidade e ao Bem-Viver na Bolívia: mulheres na construção de uma Política Feminista Contra-Hegemônica. 1 ed. São Paulo: Editora Dialética, 2023. 

ISBN: 9786525271354

Nº de Páginas: 260