Mulheres, católicas e progressistas

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Mulheres, católicas e progressistas1
Regina Soares Jurkewicz2

A ampla maioria de católicos/as vem afirmando sua discordância dos ensinamentos religiosos que condenam o uso de anticoncepcionais ou preservativos e exercendo uma constante desobediência a esses ensinamentos. É o que indica recente pesquisa encomendada por Católicas pelo Direito de Decidir ao IBOPE, na qual foram entrevistadas 2.002 pessoas em 143 municípios do país. A opinião dos católicos brasileiros frente a temas relacionados à sexualidade – ponto nevrálgico para setores conservadores do catolicismo – é majoritariamente progressista: 95% dos católicos concordam com a distribuição de métodos anticoncepcionais pela rede pública de saúde e 97% dos católicos concordam com a promoção e a distribuição do preservativo no combate à Aids/DST. Se tomarmos o tema do aborto – discussão ainda mais polêmica – verificamos que 82% dos católicos são favoráveis ao aborto nos casos de risco de vida da mulher, 80% aprovam a medida em caso de má formação fetal grave e 67% admitem a interrupção de gravidez quando for decorrente de estupro.

Os dados dessa pesquisa realizada por iniciativa de Católicas pelo Direito de Decidir estão sendo empregados em reflexões éticas importantes para as mulheres. CDD entende que, por ensinamento da própria Igreja, a interrupção de uma gravidez é questão ética delicada e que é dever dos católicos recorrer e seguir a própria consciência. Esse princípio – do recurso à consciência – não pode ser ignorado, faz parte da tradição do pensamento teológico. No entanto, o que muitas vezes se vê na opinião pública é a concepção equivocada de que não há espaço, dentro da fé católica, para abrigar católicos que podem, querem e devem discutir questões relativas à sexualidade e a reprodução humana sem medo de estar infringindo um dogma.

É importante ressaltar que a condenação ao aborto na Igreja Católica não se constitui como um dogma, que é uma declaração infalível proclamada pelo Papa sobre questões de fé. A pesquisadora Jane Hurst afirma que “de acordo com a doutrina oficial da Igreja, em nossos dias, a proibição do aborto não está sujeita ao magistério da Igreja. Ela não se rege pela infalibilidade papal. Esse fato deixa, para o debate sobre o aborto, muito mais espaço do que o que se pensa geralmente”. Como tudo o que diz respeito à moral sexual, também o aborto nunca foi objeto de uma proclamação dogmática por parte da Igreja.

Tudo isso nos permite afirmar, sem medo, que CDD é uma organização brasileira de mulheres católicas. Um grupo fundado em 1993, moderno, autônomo, ecumênico e feminista, que tem como principal desafio evidenciar que na fonte do pensamento católico é possível encontrar respostas e inspiração para as grandes questões da modernidade. Ao contrário do que afirmou Olavo Carvalho em seu artigo (Escolha o adjetivo, 9 de abril), CDD não é o “braço nacional” de nenhuma organização norte americana. Trabalhamos em sintonia com grupos equivalentes em outros países da América Latina, Europa e também EUA. O trabalho de CDD é movido por um sentimento de indignação ao constatar o lugar marginal atribuído pela Igreja Católica às mulheres. Nós, mulheres que integramos CDD, somos batizadas no mesmo batismo da Igreja Católica, o que nos torna parte dessa imensa comunidade de fé. Nos identificamos profundamente com a mensagem libertadora de Jesus Cristo. Cada uma de nós tem uma longa história de envolvimento com as pastorais da Igreja Católica. Partilhamos a fé católica recebendo como legado de nosso batismo o compromisso de ser fiéis ao Evangelho.

CDD trabalha em função do debate de idéias e do diálogo. A sociedade brasileira tem uma dívida histórica com as mulheres, porque por muitos anos dificultou sua emancipação e as excluiu dos espaços econômicos e sociais. Hoje a realidade está se transformando, as mulheres estão no mercado de trabalho, profissionalizam-se, ocupam as universidades, atuam na vida política e cada vez estão mais presentes em todas as esferas sociais. Infelizmente não se pode dizer o mesmo em relação à Igreja Católica, onde as mulheres ainda não são reconhecidas como seres capazes de viver sua fé com liberdade, não fazem parte da hierarquia católica, são afastadas do ensino teológico e não têm acesso ao sacerdócio.

CDD acredita que tem o dever moral, de alertar a Igreja para que escute as vozes, já longínquas e esquecidas, do Concílio Vaticano II e se abra ao mundo e aos problemas reais de nossos tempos. É o que está em debate, por exemplo, diante da sucessão do papa João Paulo II. Os apelos para que a hierarquia católica abra os olhos e deixe de repetir um discurso essencialista que defende a vida em abstrato se multiplicam. O futuro papa terá que enfrentar esse debate, se quiser evitar o isolamento da instituição eclesial.

Referências:
1. Artigo publicado no jornal O Globo em abril de 2005.
2. Regina Soares Jurkewicz é coordenadora do projeto Derechos Reproductivos, Religión y Fundamentalismos em América Latina: propuestas para el avance de los derechos de las mujeres. Acciones desde CDD Brasil y CDD Colombia. Doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica – PUC SP.