Nos dias 03 e 06 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou audiências públicas para discutir a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442, ação judicial que visa descriminalizar a interrupção voluntária da gestação até 12ª semana. O STF recebeu diversas entidades, organizações e ativistas, incluindo Católicas pelo Direito de Decidir (CDD), representada por Maria José Rosado, doutora em Sociologia pela École de Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, professora no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e presidenta de CDD.
Confira abaixo o discurso proferido no dia 06 de agosto, o qual defende o Estado laico, a descriminalização do aborto e a autonomia das mulheres sobre seus próprios corpos.
Agradeço a oportunidade de colocar à consideração das senhoras e dos senhores Ministros, argumentos favoráveis à legalidade do aborto em nosso país. Farei isso como cidadã, pesquisadora, feminista e integrante de Católicas pelo Direito de Decidir. Mas farei isso, em um primeiro momento, de um lugar muito particular. O lugar escolhido pelo Papa Francisco para se posicionar em relação a essa questão: O olhar para aquelas que deveriam ser as primeiras a ser consideradas – as mulheres. É desse lugar que me posiciono a favor vida das mulheres, por sua dignidade e pelo respeito aos seus direitos mais fundamentais. Como propõe a ADPF, o respeito à Constituição que nos guia exige que a dignidade, a vida e a saúde das mulheres brasileiras sejam protegidas pelo Estado.
Não pretendo esconder o lugar de onde falo. Discordo de quem mascara suas razões religiosas com supostos argumentos científicos ou jurídicos. Chamo as palavras do Papa, o que, neste espaço deveria ser considerado inadequado pois o Brasil é um país laico.. Sabemos porém, que as mulheres católicas recorrem ao aborto, em grande número, indicando mesmo as pesquisas que são a maioria das mulheres que abortam. E sua fé religiosa conta no momento de sua decisão. E conta também, o peso da ilegalidade e a possibilidade de serem maltratadas e mesmo presas. É tendo essas mulheres em meu horizonte que trago o Papa Francisco nesta intervenção.
Fui religiosa católica – freira – durante muitos anos. Morei no interior do estado do Acre e na Bahia, na região da seca. E aí tive a oportunidade de conhecer e conviver com a Teresa, com a Ni… mulheres pobres, prostitutas, com muitas outras mulheres para quem a religião era, de fato, o único consolo. E é essa a razão de eu trazer aqui, a forma do Papa Francisco tratar o aborto, as mudanças que ele introduz. Seria desonesto dizer que ele não o considera um pecado, diferentemente de nós, católicas feministas. No entanto, desde que, logo no início de seu Pontificado, em outro contexto, ele disse: “Quem sou eu para julgar?” um redirecionamento estabeleceu-se, já indicado anteriormente quando na Praça de S. Pedro, em Roma, ele pediu à multidão de fieis que o abençoasse, num claro gesto de reconhecimento da autoridade da comunidade de fé. Por séculos a Igreja considerou-se a portadora única da verdade e da capacidade de julgar os atos humanos e mesmo a sociedade. O que o Papa fez, foi colocar-se em outro lugar, num outro horizonte: aquele do pastor que não julga; compreende, perdoa e oferece compaixão. Foi ainda o que reiterou, quando estendeu aos padres a possibilidade de oferecer perdão às mulheres católicas que tivessem abortado. Em lugar da excomunhão, o acolhimento.
Não é de se admirar que a Igreja mude. Historicamente, ela sempre mudou quando percebeu que as sociedades mudavam. Foi assim em relação à escravidão e foi assim em relação aos direitos humanos. Recentemente, mais uma mudança: A condenação da pena de morte, por tanto tempo aprovada pela Igreja. Por que não poderia reconsiderar sua posição em relação ao aborto? A ilegalidade faz do aborto uma forma de pena de morte para as mulheres.
Estas, minhas primeiras considerações. E a pergunta a esta Suprema Corte: Não é também o tempo de se mudar da criminalização à legalização do aborto em nosso país?
Com relação ainda às religiões é preciso considerar que as posições existentes a respeito do aborto são diversas. No campo evangélico, organizaram-se ultimamente, mulheres favoráveis à legalização do aborto. São as Evangélicas pela Igualdade de Gênero e as Evangélicas pela legalização do aborto. No campo católico, em que o aborto nunca foi declarado um dogma, as disputas em torno dessa questão remetem a séculos de discussões internas entre moralistas, teólogas e teólogos. E há, numa antiga tradição cristã, um princípio fundamental conhecido como probabilismo, segundo o qual onde há dúvida, há liberdade. Em latim: Ubi dubium ibi libertas. Esse é o caso do aborto.
Há, no entanto, outras ponderações a serem feitas. E quero centrar-me em algumas delas. Primeiro: A legalização do aborto responde a uma questão de justiça social. Não é preciso recorrer a dados estatísticos e pesquisas para sabermos que a clandestinidade atinge prioritariamente mulheres pobres e negras, vítimas de procedimentos inadequados, de maus tratos em hospitais e mesmo prisão. Basta acompanharmos os poucos casos que chegam aos noticiários para sabermos disso. São elas as primeiras vítimas. Em um país de histórico escravocrata e cultura racista, esta é mais uma violência contra a população negra.
A legalização do aborto é também uma questão de democracia. A realização plena da cidadania para as mulheres depende de terem reconhecido seu direito de controlar sua capacidade de fazer novos seres humanos. Capacidade incrivelmente única, que só nós temos e se realiza em nossos corpos. O respeito a esse direito de realizar a maternidade como fruto de decisão pessoal exige um Estado que não seja regido por qualquer credo religioso. Um Estado laico. A laicidade é o princípio que, impedindo o Estado de legislar segundo ditames religiosos – o que acontece em Estados Teocráticos – faculta a todas as religiões plena liberdade para seu funcionamento. Um Estado laico não é pois, contra as religiões mas não permite que se imponha a toda a sociedade, cada dia mais diversa em suas adesões religiosas, normas e a agenda moral religiosa, o que seria um desrespeito à própria Constituição.
As liberdades individuais são preservadas quando se distingue crenças pessoais ou de grupos do ordenamento jurídico que diz respeito à totalidade da população. Até mesmo membros da hierarquia católica fazem essa distinção. Há alguns anos, Monseñor Alberto Iniesta, Bispo Auxiliar de Madri à época, ao referir-se à possibilidade de despenalização do aborto na Espanha, disse: “Mi conciencia rechaza totalmente el aborto; pero mi conciencia no rechaza la posibilidad de que la ley no lo considere delito”. (cit por Marta Lamas: El País, 9 setembro, 2008)
Uma terceira consideração diz respeito à compreensão do recurso ao aborto como uma questão ética e moral. Na tradição católica, há o reconhecimento de que um princípio ético fundamental é o recurso à própria consciência, especialmente em casos de maior dificuldade de decisão. Tal princípio é invocado no discurso teológico favorável à liberdade reprodutiva. Segundo a moral tradicional, escreve um teólogo, numa situação limite de conflito de valores é possível escolher qual dos valores preservar, fazendo uso do próprio julgamento moral. Segundo esse pensamento, a penalização do aborto é injusta e imoral. (…) E (ser) infinitamente mais imoral ainda pedir que se castigue toda pessoa que realize um aborto. […] Uma ética que pretenda ser para todos (e não somente para um grupo religioso) estará geralmente obrigada a optar por suspender o juízo diante do aborto, quer dizer, deixar a decisão à autonomia da pessoa (princípio sine qua non da ética).
Isto significa que há um campo para o exercício da liberdade, em que a própria consciência informada é o recurso último da decisão a ser tomada. O primeiro-ministro irlandês, democrata-cristão, médico, por ocasião da recente votação que legalizou o aborto no país, afirmou a necessidade de se respeitar as mulheres e acreditar nelas para que tomem suas próprias decisões sobre sua saúde.
É um dever ético da sociedade reconhecer as mulheres como agentes morais de pleno direito, com capacidade de escolha e decisão. Imoral é que outros decidam sobre o que as mulheres podem ou não fazer de seus corpos, de sua capacidade reprodutiva, de suas vidas. Pesquisas diversas têm mostrado que grande parte da população brasileira reconhece que quem pode decidir sobre o que fazer diante de uma gravidez impossível de ser levada adiante são as próprias mulheres e não o Estado, ou a Igreja ou qualquer outra instância. Mostra isso, o fato de repudiar-se a prisão de mulheres por razão de abortamento. A sociedade brasileira tem se mostrado cada vez mais permeável à proposta de decisão das mulheres, no caso do recurso ao aborto.
A decisão por um aborto pode ser tão moralmente aceitável como aquela de manter a gravidez. Sua legalização realiza uma ruptura ideológica e política fundamental no pensamento, na lógica e na prática política e social em relação ao conservadorismo moral que confina as mulheres no único papel de mães e esposas – Bela, recatada e do lar -, degradando a maternidade, porque a entende como destino biológico e não como escolha ética e questão de direito. É desumano e imoral, exigir das mulheres que se façam mães simplesmente porque são dotadas da possibilidade biológica de gestar.
Quero tocar finalmente, a questão mais polêmica e mais mistificada, quando se trata do aborto: A discussão em torno do início da vida e de sua defesa. Grupos e pessoas contrárias ao direito das mulheres de decidirem pela continuidade ou não de uma gravidez, afirmam a existência de uma pessoa humana desde o primeiro momento da concepção como uma verdade definitiva e absoluta. No entanto, essa é uma questão complexa que soluções simplistas e definições dogmáticas não resolvem. Na história do Catolicismo, dúvidas e discussões existiram sempre. E é bom lembrar que somente na 2ª metade do século XIX, em 1861, o aborto foi declarado um pecado, sem nunca ter se tornado objeto de dogma. Mas os debates internos continuaram. Pensadores católicos afirmam que, mesmo cientificamente, há incertezas a esse respeito.
Não pretendo banalizar o argumento de defesa da vida. Ao contrário, a vida humana é um precioso dom a ser defendido, mas não se pode restringir essa proteção à vida do feto e seguir culpando as mulheres que abortam, condenando-as à morte, especialmente as mulheres pobres e negras, nas clínicas clandestinas, em nome de uma suposta “defesa da vida”. E constitui evidente má fé tratar como bebê ou criança, o que é um zigoto, um embrião, ou mesmo um feto.
Mulheres morrem anualmente devido à ilegalidade do aborto. São mães e jovens, em sua maioria. É em defesa delas, de suas vidas, da vida de suas e seus filhos que nos posicionamos. Não da vida, abstratamente, mas da vida da Teresa, da Ni, de tantas Marias, Joanas que arriscam suas vidas e sua saúde porque a lei não lhes faculta outra escolha. Não podemos continuar fechando os olhos a essa realidade. Seria, como disse um dia o escritor português, jogar “sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”.
Países de história e cultura profundamente religiosa como recentemente a Irlanda compreenderam a necessidade e a urgência de proteger a vida das mulheres. Que o nosso país siga esse exemplo. O aborto só diminui nos países que o legalizam.
Pela vida das mulheres! Nem presas, nem mortas. Queremos as mulheres vivas! Por um país justo, democrático, laico. Essa, nossa luta! Obrigada!
Maria José Rosado
AUDIÊNCIA STF/2018
ADPF 442
Assista também a fala de Maria José Rosado: