Há um ano, em setembro de 2023, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, concedeu seu voto favorável para que o aborto até a 12ª semana de gestação fosse descriminalizado no Brasil. Seu voto na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442/2018, considerado histórico, empregou argumentos sobre autonomia reprodutiva e justiça social, fortalecendo o Setembro Verde, mês em que os movimentos feministas intensificam suas lutas por aborto seguro, descriminalização e legalização do aborto na América Latina e Caribe. Foi em 1990, durante o 5º Encontro Feminista da América Latina e Caribe (EFLAC), realizado em San Bernardo, na Argentina, que foi criada a Campanha do 28 de Setembro, com o objetivo de unir forças para combater estigmas e obstáculos relacionados ao direito ao aborto na região.
Neste sentido, a realidade da América Latina é bastante diversa: Argentina (2020), Colômbia (2022) e 14 dos 32 estados do México, incluindo Puebla, em julho deste ano (2024), colecionam vitórias importantes em relação ao direito ao aborto na última década, tornando visíveis as consequências positivas da legalização: redução da mortalidade materna e das complicações por abortos inseguros. Na contramão, países da região, como Honduras, El Salvador e Nicarágua, ainda enfrentam legislações restritivas que obrigam mulheres e pessoas que gestam a atravessar situações de risco, tanto para sua saúde quanto para suas vidas.
Em março de 2024, a França, conhecida pela trajetória de defesa da laicidade, se tornou o primeiro país do mundo a garantir, na Constituição, o direito ao aborto. Em paralelo, vemos um avanço de projetos de extrema-direita/neofascistas pelo mundo, os quais constroem suas agendas no anti-feminismo, buscando restabelecer o patriarcado e a moral sexual conservadora como base de sustentação dos projetos político-econômicos que promovem. Nos últimos tempos, testemunhamos uma diversidade de iniciativas que tentam cercear nossos direitos sexuais e reprodutivos. Por exemplo, em setembro de 2022, o governo húngaro de Orban decretou uma lei que obriga as mulheres a ouvir os batimentos cardíacos do feto antes de realizar um aborto, direito reconhecido no país desde 1953.
Este ano, o partido de extrema-direita Vox, da Espanha, conhecido por suas posições reacionárias, acionou um recurso no Tribunal Constitucional para questionar o direito ao aborto no país, legal desde 1985. A tentativa foi fracassada, e essa reação se soma às inúmeras investidas de grupos anti-direitos contrários à autonomia reprodutiva que, há décadas, questionam nos Estados Unidos a decisão Roe vs. Wade, atacando a decisão firmada pela Suprema Corte norte-americana em 1973 e revertida em 2022.
Neste ínterim, intensifica-se no contexto geopolítico o movimento internacional #FreePalestine, que denuncia as injustiças reprodutivas provocadas pelo Estado de Israel, o qual, desde 1948, ceifa milhares de vidas e submete o povo palestino, principalmente mulheres e crianças, a um genocídio intermitente.
No Brasil, a crise sistêmica de acento neoconservador, com a eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro em 2018, baseou-se na construção de uma agenda anti-gênero que teve consequências nocivas e gerou efeitos controversos no campo dos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. Estimulando um masculinismo viril como política de Estado, o ex-governo publicou, em 2022, uma Norma Técnica do Ministério da Saúde (MS) que fixava limite gestacional para a realização do aborto. No entanto, a publicação estava em desacordo constitucional com o Código Penal brasileiro de 1940, que ao descrever os permissivos legais do aborto não fixa limite gestacional. Não bastasse a cruzada antiaborto protagonizada pelo MS, o ex-governo decidiu agir institucionalmente para obstaculizar o acesso ao aborto de meninas estupradas.
Em 2020, embebido de fundamentalismo religioso e terços em mãos, um grupo antidireitos de católicos e evangélicos foi à porta do Hospital Estadual Roberto Arzinauth Silvares, em São Mateus, no Espírito Santo (ES), para gritar que uma menina capixaba de 10 anos, grávida após ser estuprada pelo seu tio, não tivesse o direito ao aborto legal. O absurdo teve apoio institucional da ex-Ministra do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), Damares Alves. Ao invés de proteger a menina estuprada – como indica a legislação nacional e os tratados internacionais assinados pelo Brasil –, o Ministério divulgou dados sigilosos, convocou grupos extremistas, coagiu familiares, violou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e criou condições para que a menina de 10 anos se tornasse mãe. Mesmo com inúmeros obstáculos, a menina conseguiu realizar o procedimento em um Hospital do Recife. Porém, queremos chamar a atenção que o Estado, que tem a obrigação de garantir nossos direitos e fortalecer os fluxos de atendimento no exercício do direito ao aborto, é um dos prinicipais obstaculizadores.
O Brasil coleciona casos de violação ao aborto legal com patrocínio direto da Igreja Católica e de setores fundamentalistas. Em 2009, a Arquidiocese de Olinda e Recife tentou impedir que uma menina de nove anos, grávida de gêmeos, pudesse ter direito ao aborto legal na cidade de Alagoinha, Recife. Segundo a legislação brasileira, toda relação com menores de 14 anos é considerada estupro de vulnerável e o direito ao aborto legal deve ser garantido. Em 2005, o padre Luiz Carlos Jordi, da Diocese de Anápolis (GO), coagiu um casal que decidiu interromper a gestação por malformação fetal. O padre foi condenado em 2016 por assédio moral e coação. Em julho deste ano, uma menina de 13 anos de Goiás, grávida após ser estuprada por um amigo do pai, teve seu direito ao aborto obstaculizado por advogados vinculados à União de Juristas Católicos de Goiás. Após a Justiça de Goiás negar duas vezes o direito à menina estuprada, o Superior Tribunal de Justiçal (STJ) efetivou o direito ao aborto legal.
Em 2022, o Ministério da Saúde do ex-governo Bolsonaro organizou o guia de Atenção Técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento com dados anti-científicos, sem respaldo do cuidado e assistência em saúde reprodutiva. No mesmo ano, a sociedade se levantou contra a juíza do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), Joana Ribeiro, que tentou impedir a realização do aborto previsto em lei em uma menina de 11 anos grávida após violência sexual. Durante uma audiência, esta configurada como ilegal e reflexo de prática de tortura psicológica, a juíza disse à menina estuprada para que ela “aguentasse mais um pouquinho”. Após apresentação de habeas corpus e com a indignação da sociedade, o procedimento foi realizado e a justiça do alívio foi feita. Então, como podemos falar de direitos se vemos cotidianamente um cenário tão hostil contra vítimas de violência sexual?
Diante de um endurecimento fascista, com ataques sistemáticos às autonomias reprodutivas e o aumento da criminalização dos movimentos sociais, conflagrou-se a necessidade de uma Frente Ampla para derrotar o projeto político de Bolsonaro. A eleição do terceiro mandato do presidente Lula (PT), em 2023, foi importante para garantir marcos civilizatórios mínimos e enfrentar o neoconservadorismo em curso. No entanto, sabemos que o fascismo não se derrota nas urnas, pois são projetos políticos capilarizados, que nos impõem muitos desafios, especialmente quando pensamos na derrota do patriarcado e na efetivação da justiça reprodutiva no Brasil.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024 aponta indicadores alarmantes de violência contra mulheres no país. O feminicídio, prática de morte justificada pelo gênero, cresceu 0,8% entre 2022 e 2023, segundo o levantamento. As vítimas mais atingidas pelo feminicídio têm geração e raça: mulheres negras estão entre 63,6% e com idade entre 18 e 44 anos (69,1%). São dados que comprovam que a violência patriarcal no Brasil é sustentada pelo racismo, que torna os corpos racializados e dissidentes como “mais matáveis” e descartáveis.
No campo das injustiças reprodutivas, políticos aliados ao ex-presidente Jair Bolsonaro, como o prefeito de São Paulo Ricardo Nunes (MDB-SP), reverberam a política antiaborto ao fecharem Serviços de Aborto Legal. Durante as festas de Natal e Ano Novo, em 2023, sem qualquer justificativa, Nunes fechou o serviço do Hospital Vila Nova Cachoeirinha, na periferia de São Paulo. O serviço era um dos principais da cidade e acolhia meninas e mulheres vítimas de violência sexual do país inteiro; cabe ressalar que era o único da cidade e um dos poucos no Brasil especializado em assistolia fetal, procedimento médico recomendado pela Organização Mundial da Saúde para interromper a gestação que ultrapassa 20 semanas. Não bastasse este retrocesso, a Prefeitura divulgou indevidamente laudos sigilosos de pacientes em uma prática idêntica ao famoso Caso das 10 mil, onde pacientes de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, tiveram seus dados ilegalmente expostos.
Na esteira da criminalização, em abril de 2024, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) perseguiu profissionais da saúde por realizarem abortos previstos em lei. A diretização e negacionismo das entidades de classe dos profissionais da saúde é perigosa. Em 2024, foi eleita uma chapa para o Conselho Federal de Medicina (CFM) com a presença do médico Raphael Câmara. O ginecologista atua como um agente antidireitos que obstaculiza o direito ao aborto de meninas, mulheres e pessoas que gestam, inclusive foi o relator da Resolução CFM nº 2.378/2024 que proibia médicos de realizarem o procedimento de assistolia fetal em gestações com mais de 22 semanas decorrentes de estupro e que foi barrada pelo Ministro Alexandre de Moraes.
Os ataques também estão onde menos esperamos. No Estado do Ceará, o governador Elmano de Freitas (PT) quer entregar o Hospital e Maternidade José Martiniano de Alencar, do SUS, referência em Cuidados Intermediários Neonatais e Ginecologia, para a Polícia Militar do Estado. Movimentos de saúde e feministas estão denunciando a tentativa de entrega hospitalar às polícias, além de reivindicarem a universalização, a descentralização e a participação popular no SUS.
Mesmo diante de tantos retrocessos, em junho deste ano, a indignação levou milhares de pessoas às ruas no “outono feminista” e contra o nefasto Projeto de Lei (PL) 1904/2024, conhecido como PL do Estuprador. O PL, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), equipara a pena de homicídio para as pessoas que praticam aborto após às 22 semanas de gestação. Se aprovada, a lei irá impor mais criminalização para as meninas, mulheres e pessoas que gestam e que já foram estupradas, em particular de meninas negras, as mais atingidas pela violência sexual. E o estuprador, mais uma vez, sairá ileso. As ruas foram tomadas pela indignação e por manifestações afirmando que Criança Não é Mãe, Estuprador Não é Pai e Arquiva PL 1904!
Se pensamos nos nossos rios, florestas, campos e cidades, sentimos a injustiça climática que reverbera em práticas de racismo ambiental, com despejos climáticos, deslocamentos forçados, ecocídios, enchentes, desmatamentos e secas causadas pela sanha do agronegócio extrativista. As enchentes no Rio Grande do Sul, que resultaram em 177 mortes, também tornaram visíveis situações de violência física e sexual sofridas por mulheres e meninas nos abrigos. As queimadas na Amazônia e em São Paulo, o “Dia do Fogo”, o aumento do desmatamento no Cerrado e da seca em regiões semiáridas do Nordeste comprovam: não existe planeta B. Os rios estão secando, o ar está piorando e os alimentos estão cada vez mais intoxicados. Nossos feminismos devem apontar, a exemplo dos feminismos indigenistas, quilombolas e populares, a denúncia das injustiças climáticas, e, na soma dos nossos ativismos, as Marchas pelo Clima, Água, Território e Reforma Agrária devem ser vistas como um dever ético de soberania e sobrevivência, por segurança alimentar e direito à terra.
Paradoxalmente, o dia 28 de setembro deste ano, data em que se luta por Aborto Seguro, Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe, acontecerá em um sábado, faltando uma semana para as eleições municipais. Os desafios são inúmeros e nossa esperança não pode dar ponto sem nós.
Sabemos que devemos continuar trabalhando na descriminalização social do aborto. A pesquisa da Agência Patrícia Galvão, de 2022, demonstra que 74% dos brasileiros acreditam que os casos de aborto previstos por lei devem ser mantidos ou ampliados. Por isso, acreditamos que as leis devem acompanhar os processos sociais. Assim, aguardamos que o Ministro Barroso coloque em pauta novamente a ADPF 442, para debater de forma científica e laica as implicâncias da criminalização do aborto no Brasil. Também desejamos que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) não tente impor suas doutrinas sobre a Constituição brasileira, como aconteceu este ano, quando iniciaram uma ação para derrubar o voto da Ministra Rosa Weber no STF. Sabemos que apenas três permissivos legais nunca conseguirão contemplar a multiplicidade de situações pelas quais as mulheres e pessoas que gestam atravessam na materialidade de suas vidas.
O tempo urge, e o 3º Seminário Justiça Reprodutiva e Religião: Territórios, Vidas e Direitos, organizado por Católicas pelo Direito de Decidir em setembro, apontou o sopro do espírito feminista para as lutas do ontem, do hoje e de sempre:
- Justiça Reprodutiva como Direito à Vida: maternidades livres, abortos seguros, territórios habitáveis, sexualidades justas e despatologizadas!
- Laicidade do Estado: para coibir práticas de neoconservadorismos religiosos que obstaculizam a autonomia sexual e reprodutiva!
- Enfrentar o racismo patriarcal por autonomia sexual e justiça reprodutiva: vidas saudáveis, laicas e sem violências!
- Educação sexual para descobrir e prevenir, anticoncepcionais para aproveitar e aborto livre e gratuito para decidir!
- Defender a democracia feminista: votar em quem luta por justiça reprodutiva e aborto legal no SUS! Criança não é mãe, estuprador não é pai!
Católicas pelo Direito de Decidir – Setembro de 2024