Por Maria José Rosado*
Em 2022, ao escolhermos entre Democracia e barbárie, elegemos um Governo cujo direcionamento, acreditávamos, seria republicano e laico. No entanto, nos sentimos traídas. Ao tentar obstruir a votação da Resolução 258/2024 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), forças governamentais aliaram-se ao que há de mais reacionário e retrógrado em nosso país: aqueles que defendem embriões e fetos, mas não se importam com a vida de meninas e mulheres.
A Resolução organiza o fluxo de atendimento para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual que engravidam e optam por não prosseguir com a gestação. Trata-se de uma medida essencial para a proteção da infância, cuja aprovação em assembleia enfrentou resistência do próprio Governo Federal. Apesar de ter sido aprovada, a Resolução foi posteriormente anulada em ação movida pela senadora Damares Alves, em dezembro do ano passado. Contudo, após recente decisão do Tribunal Regional Federal, a Resolução do CONANDA foi finalmente publicada no Diário Oficial da União.
Ao propor normas de proteção e defesa de crianças e adolescentes, essa Resolução responde a demandas da sociedade civil brasileira expressas em recentes pesquisas de opinião e nas manifestações públicas que reuniram milhares nas ruas e nas redes sociais para gritar alto: “Crianças não são mães!” Uma real manifestação do valor da vida humana.
Tratar a questão do aborto não é apenas tratar da interrupção de uma gravidez. É também refletir sobre o que significa a maternidade na vida das mulheres. Não “das mulheres”, como se todas nós pudéssemos ser vistas em um genérico “mulheres” a quem se atribui a maternidade como destino. É como se a realização do ser mãe significasse, sempre, e em quaisquer condições, uma bênção. Impossível, hoje, não pensar naquelas mães cujos filhos são alvo cotidiano de uma sociedade cuja violência tem mira certa. Mulheres negras, periféricas, têm a vida de seus filhos sempre por um fio. Essa é a saga de tantas e tantas mães em nosso país. Vale lembrar que o Estado também é responsável por isso.
Ser mãe é muito mais do que gestar e dar à luz e não poderia, não deveria, jamais, resultar de uma violência. A associação de violência, maternidade, machismo e dor marca a vida de meninas e mulheres. Essa, a realidade que desejamos ver banida do cenário nacional. Queremos a maternidade realizada por mulheres que a desejem, com quem e quando desejem, e se quiserem. Jamais por meninas! E que as mães tenham as condições necessárias para criar suas filhas e filhos: acesso à saúde, à educação e à possibilidade de um projeto de futuro. Jamais a maternidade imposta e muito menos a meninas, não é demais repeti-lo! A sociedade brasileira expressou-se recentemente contra a maternidade forçada. Ao obrigá-las à maternidade desrespeita-se e banaliza-se sua vida, condenando-as ao risco de morte. Desrespeitam-se e banalizam-se princípios e valores republicanos, ferindo a ética e a moralidade pública.
Como cidadãs deste país exigimos respeito. Respeito aos nossos direitos, à nossa capacidade ética para tomar decisões relativas à nossa vida, aos direitos de meninas e adolescentes que atravessam situações de violência e são revitimizadas pela obrigação de parir.
Em janeiro de 2023 nos sentimos esperançosas assistindo ao Presidente eleito subindo a esplanada do Planalto de mãos dadas com grupos historicamente violentados. Qual foi o sentido daquela cena? Que governo é esse?, nos perguntamos.
Nenhuma tentativa de retrocesso em relação aos direitos sexuais e reprodutivos conquistados deixará de ter resposta da sociedade, a ser expressa também nas urnas nas próximas eleições.
Neste início de ano, move-nos a esperança, teimosamente renovada, de que 2025 traga transformações significativas na realidade dos grupos vulnerabilizados social e economicamente. Isto só será possível com um governo verdadeiramente democrático, que abra canais genuínos de diálogo e participação da sociedade civil nos espaços de tomada de decisão. O resto é se descaracterizar ao ponto de se confundir com a barbárie que se quer superar.
*Maria José Rosado é Doutora em Ciências Sociais pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris, França. Em 2021, foi nomeada pelo estudo AD Scientific Index (Alper-Doger Scientific Index) uma das 10 mil docentes mais influentes das Américas. É presidenta e uma das fundadoras da ONG Católicas pelo Direito de Decidir.