Por Murilo Araújo*
Em junho de 2018, no dia de Corpus Christi e às vésperas da Parada do Orgulho LGBTIA+ daquele ano, católicas e católicos LGBTIA+ de todo o país se reuniram na mesma cidade de São Paulo para a realização de seu II Encontro Nacional. Movidos pelo debate em torno do enfrentamento à violência contra a população LGBTIA+ na Igreja e na sociedade, os grupos participantes da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT escolheram tomar como inspiração bíblica o bonito versículo do livro de Ester: “O meu desejo é a vida do meu povo” (Ester 7, 3).
Para além da interpretação mais evidente – a de que também nós desejamos que o nosso povo, a comunidade LGBTIA+, sobreviva a esta cultura de morte que nos tem sido imposta nestes tempos duros – aquele texto tinha pra nós um sentido muito especial, de afirmação de orgulho, pautado numa certa leitura desse texto que chegou a nós a partir do clássico ensaio da filósofa estadunidense Eve Sedgwick, A Epistemologia do Armário, considerado um dos textos mais importantes da história do pensamento ocidental a respeito das questões de sexualidade e gênero.
Para as pessoas que não têm familiaridade nem com o texto de Sedgwick nem com a história dessa personagem bíblica, cabe uma contextualização: Ester era uma mulher judia que foi coroada rainha da Pérsia após casar-se com o rei Assuero, num tempo em que os judeus viviam em exílio e sofriam forte perseguição – razão pela qual Ester foi orientada a esconder de seu marido a sua identidade judaica. E quando um dos ministros do governo, por razões políticas, promove uma conspiração para convencer o rei a exterminar todo o povo judeu do reino, Ester se vê diante do dilema de contar ou não ao marido a respeito da sua condição. Se contasse, colocaria sua própria vida em risco; mas também seria o único modo de interceder pela vida da nação a que pertencia. E é esse o pedido que Ester apresenta ao rei, que desiste do genocídio planejado: “O meu desejo é a vida do meu povo”.
A história de Ester é especial para Sedgwick – e também para nós, desde então – por ser uma história que nos soa bastante familiar e próxima: a história de uma pessoa que escondia quem era por medo da perseguição e da violência, e que, apesar dos riscos, decidiu mostrar-se e contar a própria verdade, como um gesto amoroso e político de afirmação de si e da dignidade de seu povo.
Em resumo, é a história de uma saída do armário.
A história da afirmação de um orgulho.
Evidentemente, muitos elementos diferenciam os armários sexuais e de gênero que experimentamos hoje do armário religioso que aprisionou Ester em seu tempo, como a própria Sedgwick discute de forma brilhante no ensaio mencionado. Mas com um aspecto em especial, que a autora destaca, nós nos identificamos muito: “é que a pequena capacidade individual de Ester, de arriscar a perda do amor e do favor de seu senhor, tem o poder de salvar não só seu próprio espaço na vida, mas seu povo”. Em outras palavras, significa entender que saída do armário de Ester não era só pessoal, mas também política; não era uma afirmação particular, mas coletiva… e de algum modo, as histórias de saída do armário que seguimos vivendo hoje, dentro e fora das nossas Igrejas, continuam tendo um significado parecido para nós.
Ainda que a LGBTfobia da hierarquia e dos setores fundamentalistas da Igreja não seja exatamente uma novidade, vivemos hoje um tempo de disputas e tensões em que muitos desses grupos têm reafirmado de forma ativa e contundente a sua contribuição para o projeto de aniquilação e de morte que afeta a nossa população. Nas últimas semanas, em pleno mês do Orgulho LGBTIA+, temos visto uma onda ainda mais frequente de posicionamentos e declarações de lideranças cristãs forjando leituras fundamentalistas para reafirmar o seu “direito” de serem LGBTfóbicos em nome de Deus – muitos deles seguindo a trilha da recente nota da Congregação para a Doutrina da Fé, que lamentavelmente insistiu em reafirmar meia dúzia de estigmas a nosso respeito, mesmo diante do avanço considerável que essa discussão vem ganhando nas ciências, na teologia, nas comunidades católicas ao redor do mundo, e mesmo entre boa parte do clero. Dias atrás, na região metropolitana do Recife, uma “escola cristã” veio a público se manifestar contra uma campanha que incentivava diálogos com crianças sobre respeito à diversidade, como se fosse uma coisa ruim e gravíssima; enquanto, na mesma semana, a alguns quilômetros dali, uma mulher trans teve seu corpo incendiado vivo enquanto dormia na rua, sem que isso mobilizasse qualquer atenção, compaixão ou solidariedade da parte das lideranças cristãs “conservadoras” da região.
Passados três anos desde que abraçamos o desejo de Ester como nossa inspiração, é desafiador olhar para toda essa realidade e constatar o quanto esse compromisso ainda segue exigindo de nós ousadia e profecia, enquanto LGBTIA+ cristãos – porque, na prática, nós seguirmos diante dessa realidade dura que é viver sob ameaça, por pertencemos a um reino que planeja e se movimenta ativamente para promover nossa própria aniquilação. Muites de nós somos obrigades a deixar as nossas comunidades de fé por causa do tamanho dessa violência, enquanto aquelas e aqueles que permanecemos, o fazemos sobretudo por entender que o compromisso com a nossa fé e com o Evangelho passa essencialmente pelo combate direto a esse projeto de morte que ainda impera entre nós.
Por essa razão é que nós também nos juntamos à celebração e à afirmação de nosso Orgulho, neste mês de junho em e todos os outros, fora e também dentro das nossas Igrejas. Pela nossa caminhada e trajetória de luta e de fé, sabemos, por experiência, que dizer nossos nomes e falar de quem somos é um sinal de profecia: é denúncia da injustiça e é anúncio de Esperança para todas as pessoas! E mesmo que isso nos coloque em risco vez ou outra, seguiremos implodindo nossos armários, gritando nossos nomes, fazendo teologia, trazendo nossos olhares e vozes para a luz, na consciência de que esse é um dos tantos gestos que poderão salvar e libertar não apenas as nossas vidas individuais, mas também as vidas de todas as pessoas LGBTIA+ que ainda vivem sofrendo sob o peso da violência e da perseguição. Não só o nosso desejo, mas sobretudo o nosso compromisso, é a Vida do nosso Povo. E é em nome dela que, assim como Ester, nós seguiremos afirmando as pessoas que somos, dentro e fora da Igreja, da maneira como fomos criadas.
*Murilo Araújo é jornalista e pesquisador, Mestre em Estudos Linguísticos, com pesquisa sobre gênero, sexualidade e religiosidades no contexto da Igreja Católica. Ativista LGBTIA+ negro, é criador de conteúdo no canal Muro Pequeno, além de atuar no movimento de cristãos LGBTIA+ no Brasil e no mundo, atualmente enquanto membro da coordenação nacional da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT.