Reflexões sobre a Vida, sua origem e significados1 Por Regina Soares Jurkewicz2 O objetivo deste texto é o de refletir sobre o significado de defender a vida e pensar em que vida estamos falando, vida de quem. Tradicionalmente no pensamento oficial da Igreja Católica nos deparamos com uma concepção teológica do ser humano que reforça a perspectiva antropocêntrica. Na história do catolicismo Deus é o criador que dá a vida a todos os seres vivos e às pessoas é conferido um lugar especial, que lhes imprime uma dignidade intrínseca à própria humanidade criada por Deus. Segundo essa visão Deus imprime no coração de cada pessoa uma “lei natural” que deve ser a matriz para orientar os passos humanos. A leitura do texto base da última Campanha da Fraternidade – ano 2008, por exemplo, nos coloca em destaque dois aspectos que permanecem subjacentes às idéias expostas:
- O homem criado por Deus para dominar o mundo e os demais seres vivos.
- O cristianismo que se apresenta como uma religião mais uma vez imperialista.
Estes dois aspectos infelizmente acentuam rasgos de arrogância e soberba, ocultos nos discursos de nossa hierarquia eclesiástica. Não me refiro a uma arrogância individual, mas sim histórica, própria das religiões dominantes. Mas, enfim, se queremos defender a vida por onde vamos começar? A primeira afirmação que me parece fundamental é a necessidade de defender a vida do planeta. Os seres humanos já não se salvarão mais sozinhos, sua vida está profundamente comprometida com todos seus comportamentos irresponsáveis com relação às outras formas de vida não humanas. Defender a vida hoje passa necessariamente por defender nosso eco-sistema e construir uma cosmovisão na qual o ser humano seja o principal responsável pela continuidade, tanto da nossa espécie, como de tantas outras espécies vivas e também criadas por Deus. Ou o ser humano se salvará junto com o planeta ou não haverá sobrevivência nem para embriões humanos, fetos, crianças, jovens, adultos ou velhos/as. Essa é a maior ameaça de nossos tempos! Então a defesa da vida, requer um olhar que vai além da vida humana, que é sensível à outras formas de vida e que reconhece a interdependência entre elas. Implica também em defender uma perspectiva que submeta os interesses de mercado à vida, por exemplo, o abuso e a exploração da vida dos animais que servem como alimentos para os seres humanos e se transformam em mercadoria. A questão aqui colocada, não é se devemos ou não comer carne animal, mas sim a necessidade de rejeitar um processo de exploração absurda da vida animal. Então defender a vida é defender o eco-sistema, é defender a vida animal, e também é defender a vida humana. Ou seja, essa consciência muito mais horizontal e circular do lugar humano no mundo nos tira do centro e nos abre possibilidades éticas interessantes. É tendo esse olhar que para mim antecede qualquer discurso sobre a vida, que eu gostaria de refletir e apresentar algumas idéias sobre a defesa da vida humana e o discurso da hierarquia Católica. A mesma Igreja que defende a vida: • ao proibir o uso de preservativos está ignorando milhões de pessoas que morrem no mundo todo, vítimas da aids. • ao se posicionar contrariamente ao recurso à eutanásia, está condenando pessoas a sofrerem indefinidamente num leito de morte, sem ter acesso livre e consentido a uma morte digna. • ao condenar as pesquisas com células-tronco embrionárias, está também condenando milhares de pessoas com deficiências a matarem suas esperanças. • ao tentar impedir a implementação de políticas públicas de saúde, como é o caso do planejamento familiar e da distribuição criteriosa da contracepção de emergência, coloca em risco a vida das pessoas. • ao condenar o aborto em qualquer circunstância, desrespeita o princípio fundamental à realização de uma vida digna e feliz, que é o direito de decisão autônoma sobre o próprio corpo. Condena as mulheres a levar adiante uma gravidez resultante de estupro, ou a não interromper uma gravidez que coloca a vida delas em risco, ou cujo feto não terá nenhuma condição de sobreviver. Então, essas situações nos indicam que a defesa da vida precisa ser compreendida em sua complexidade. Um dos temas mais complexos e sobre o qual há pouco consenso é o tema do início da vida humana. A posição oficial da IC assume como dado definitivo que desde a concepção há uma vida humana em gestação. O termo vida humana é utilizado de forma ambígua, para significar pessoa. Dessa definição da existência de uma pessoa humana, desde o primeiro momento da fecundação decorre que toda interrupção de gravidez seja considerada como um homicídio. A ciência é invocada para justificar a natureza totalmente humana e pessoal do embrião. Há duas tendências no uso dos dados científicos. Ambas partem do reconhecimento pelos cientistas de que desde o momento da fecundação existe uma realidade celular distinta do óvulo e do espermatozóide, o zigoto, que dispõe de código genético próprio e é, indiscutivelmente, vida humana. Uma primeira tendência deduz daí que o zigoto é pessoa humana, gozando de todos os direitos inerentes a ela. Isto porque, possuindo um código genético completo, o desenvolvimento do zigoto dá-se em um processo contínuo, sem interrupção e por autogestão, culminando na pessoa humana, mesmo ainda no ventre materno. Uma outra corrente desenvolve uma argumentação de caráter mais filosófico. Considera o zigoto como pessoa humana em potência, equivalente, no entanto, – com o mesmo valor e os mesmos direitos – à pessoa humana em ato, isto é, o indivíduo nascido. Para ambas as tendências acima, a interrupção de um processo gestacional é considerada um ato homicida, seja porque tira a vida de uma pessoa humana – o zigoto – seja porque eliminar uma vida potencial equivale à eliminação de uma vida em ato. O princípio moral que deve prevalecer é o de deixar agir a natureza, seguindo seu curso normal, isto é, conduzindo, em um processo unívoco e contínuo, ao desenvolvimento de uma pessoa humana. Entretanto, há uma contra-argumentação desenvolvida pelo próprio pensamento católico que não se impõe de forma dogmática, se estrutura de forma mais dialógica e oferece elementos de compreensão sobre o início da vida humana. Esta contra argumentação recorre também aos dados científicos e indica que estes mesmos dados não permitem afirmar com certeza a existência de uma pessoa humana, desde os primeiros momentos de fecundação. Critica a visão biologicista do discurso oficial católico. Levanta questões tais como: • segundo a ciência, a individuação se dá na segunda semana da gestação, no momento em que ocorre a nidificação, ou fixação na matriz. Se filosoficamente o que constitui a pessoa é o fato de que se trata de um indivíduo, uno e único, a fixação da individualidade não pode ocorrer antes da nidificação. Tanto é que no caso da geração de gêmeos, a divisão do embrião em dois indivíduos ocorre somente após esse processo. • outra questão está relacionada à perda imensa de zigotos, que ocorre antes da fixação do óvulo fecundado. Calcula-se que em torno de 75% dos zigotos são eliminados antes de se implantarem na matriz. Esse dado genético leva muitos estudiosos a se perguntarem se de fato, a natureza eliminaria tantas PESSOAS, ou se esse processo não estaria indicando, ao contrário, que não existem elementos estruturais no zigoto que permitam reconhecê-lo como tal. • a consideração do desenvolvimento da consciência humana como critério para o estabelecimento da existência de uma pessoa humana. Não há possibilidade de consciência sem vida cerebral. A célula geradora do córtex cerebral inicia seu desenvolvimento no 15º dia após a concepção e somente em torno da 8ª semana está suficientemente desenvolvido para que se possa detectar a atividade cerebral. O córtex cerebral é uma condição indispensável para que haja consciência humana, portanto que haja uma pessoa. Se procurarmos ver o que diz a tradição católica sobre este tema também encontraremos muitas contradições, por exemplo, Sto Tomás de Aquino (1225-1274) admitia um desenvolvimento progressivo do embrião, através de etapas sucessivas. Para ele a alma (entendida como princípio vital, forma substancial do corpo) só pode estar presente em uma matéria capaz de recebê-la, e o óvulo fertilizado ou o embrião não podem ter uma alma humana porque não estão prontos para isso. Ou seja, para ele há uma hominização tardia – a alma racional só existiria após 40 dias da concepção no caso de um feto do sexo masculino e 80 dias, no caso de um feto do sexo feminino. Essa idéia levou-o a não qualificar o aborto como um homicídio, quando ocorrido no início da gestação. Há teólogos da atualidade como Paul Ladrière que discute o fato de que processos naturais se transformem em leis morais. A chamada lei natural é apresentada como expressão da vontade divina, perdendo-se de vista sua dimensão histórica. Ladriere critica o que ele chama de postura hipermaterialista da Igreja, ao qualificar como humano, o simples encontro do óvulo e do espermatozóide, fundando o direito à vida sobre um dado estritamente biológico. Evidencia que esse dado é insuficiente, pois é também necessário que um embrião seja “ destinado a viver” .Por outro lado propõe um outro horizonte interpretativo, trazendo para o debate a afirmação de Y.F. Jacob – biólogo: Não há solução para o problema do início da vida, pois esta “não começa nunca, mas continua há cerca de 3 milhões de anos. Um espermatozóide isolado ou um óvulo não é menos vivo que um óvulo fecundado” Concluindo: penso que a discussão sobre o início da vida humana requer um acordo ético, racional e interdisciplinar, que vá além da biologia ou do que é ou não natural. Penso também que deve ser feita em um contexto mais amplo que considere todas as possibilidades de vida existentes no planeta. O julgamento ético não pode ser feito à priori, ignorando as relações humanas, os contextos de toda natureza e as histórias individuais. Referências: 1. Artigo publicado na Revista Mátria da CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação. 2. Regina Soares Jurkewicz é coordenadora do projeto Derechos Reproductivos, Religión y Fundamentalismos em América Latina: propuestas para el avance de los derechos de las mujeres. Acciones desde CDD Brasil y CDD Colombia. Doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica – PUC SP.