No décimo aniversário da escolha do dia 18 de maio para marcar o “Dia Internacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes”, queremos assinalar em evento ocorrido em 2009, envolvendo uma sequência de abusos impostos a uma menina de nove anos naquela época. Consideramos esse episódio como um possível indício do potencial surgimento de sensibilidade da Igreja Católica para as questões relativas à saúde física e mental das mulheres.
O mais intrigante é que este sinal – de compaixão e de respeito para com o sofrimento das mulheres – veio de representantes da mais alta hierarquia institucional, no Vaticano.
Com o propósito de expressar nosso entendimento a respeito da violência simbólica exercida pela Igreja católica como um dos alicerces que sustentam a violência contra as mulheres, trazemos para o centro da análise este caso emblemático que recentemente comoveu o Brasil e o mundo.
Em fevereiro de 2009, jornais regionais noticiaram o fato ocorrido na cidade de Alagoinha, interior de Pernambuco, envolvendo uma menina de 9 anos, grávida após ter sido estuprada pelo padrasto durante vários anos. A mãe dizia nunca haver desconfiado dos abusos cometidos por seu companheiro contra as filhas. A menina, que não tinha consciência de estar grávida, relatou nunca haver contado nada à mãe porque o agressor a ameaçava de morte dizendo que a mataria caso revelasse o “segredo” para a mãe. “Ele dizia que ia cortar meu pescoço com a foice”. Uma ultrassonografia revelou a gravidez de gêmeos, entre 15 ou 16 semanas. O padrasto, de 23 anos, depois de preso confessou o crime. Orientada pelos profissionais de saúde – a respeito dos riscos de morte caso mantivesse a gravidez e do direito de recorrer ao aborto legal – a mãe conduziu a menina para uma maternidade de Recife.
Após três dias de espera, sem que o procedimento fosse realizado, a mãe pede alta para a criança e a conduz, com auxilio de militantes feminista para outro hospital onde o aborto é prontamente realizado. O Arcebispo local – que passara vários dias em busca de procedimentos jurídicos e recrutando autoridades que se alinhassem a ele, posicionando-se contrariamente à interrupção da gravidez – ao saber que suas manobras foram contornadas, tomou a decisão de comunicar publicamente a excomunhão da mãe, das militantes e dos profissionais de saúde envolvidos.
O Arcebispo, recriminado por ter pronunciado a excomunhão destas pessoas enquanto não pronunciava qualquer palavra de censura ao padrasto estuprador, saiu-se com a seguinte frase: “Eu não estou dizendo que o estupro e a pedofilia são coisas boas. Mas o aborto é muito mais grave e, por isso, a Igreja estipulou essa penalidade automática de excomunhão”.
A repercussão da excomunhão e da comparação entre estupro e aborto provocou uma avalanche de protestos por parte de leigos, formadores de opinião e autoridades, como o Presidente da República e de Ministros de Estado, artistas, cientistas e médicos, inclusive os próprios “excomungados”.
A forte manifestação pública emitida por atores com capacidade de disputar, na mídia nacional e internacional, com setores católicos ultraconservadores o poder outrora hegemônico da Igreja católica para falar sobre esse tema pode ter sido o motivo da nova posição do Vaticano a respeito do caso. Apesar da ambiguidade de uma nota oficial da CNBB, bispos e religiosos católicos europeus e brasileiros foram taxativos na condenação do Arcebispo Dom José Dias Sobrinho.
Por fim, e esse é fato intrigante referido no início deste editorial, o presidente da Academia Pontifícia para a Vida, Monsenhor Rino Fisichella – um dos mais próximos colaboradores do Papa – afirmou que a credibilidade do ensinamento da Igreja foi atingida. Esta “aparece aos olhos de tantos marcada por insensibilidade, incompreensão e falta de misericórdia”. Acrescenta, ainda, que o juízo expresso na excomunhão pesa como uma guilhotina (…) “há outros que merecem a excomunhão e o perdão, não aqueles que salvaram sua vida e a ajudaram a recuperar a esperança e a fé.”
Pela primeira vez, nestes tempos de fundamentalismo exacerbado, se manifesta de maneira tão nítida uma discordância tão séria no âmbito da alta hierarquia católica, um discurso compassivo em relação à prática do aborto.
Pode-se tomar esse episódio como um sinal de novos rumos da instituição em relação ao aborto? Nossa resposta é: talvez.
Finalizamos com uma pergunta que embasa nossas dúvidas. Quase todas as manifestações contrárias à excomunhão enfatizavam o abuso cometido contra uma criança, franzina, trinta quilos, onze anos de idade, inocente, exposta à violência do padrasto, pobre, residente numa cidadezinha do interior nordestino, filha de pais analfabetos.
Enquanto comemoramos a aparente mudança de atitude de representantes da Igreja, mostrando-se sensibilizados para o abuso sofrido pela menina, restam-nos incertezas:
Caso a vítima de abuso fosse uma mulher adulta, o estupro e o aborto teriam provocado indignação no país e fora dele?
Não fosse a pressão pública internacional, teria o representante do Vaticano, D. Rino Fisichella, tornado pública a reprimenda ao Arcebispo de Recife?