AUDIÊNCIA PÚBLICA NO SENADO FEDERAL
Sobre SUG 15 de 2014, que regula a interrupção voluntária da gravidez, dentro das doze primeiras semanas de gestação
Brasília, 24 de setembro de 2015
Presidente de Católicas pelo Direito de Decidir, Maria José Rosado
Exmo. Senador Magno Malta, Presidente da Mesa; Senhoras e senhores Senadoras e Deputadas; componentes da mesa e demais presentes.
Agradeço a oportunidade de estar aqui, mais uma vez, participando de uma audiência pública. É fundamental, em um país democrático, que se multipliquem os espaços de debate, para que as legislações expressem a vontade esclarecida de cidadãs e cidadãos.
Sou socióloga, professora universitária e pesquisadora. No entanto, não é nessa condição que aqui me apresento. Estou aqui, como criadora e coordenadora da ONG Católicas pelo Direito de Decidir. Falarei como feminista católica, como mulher e como cidadã brasileira.
Gostaria de iniciar, falando de maternidade. Pode parecer estranho que, discutindo uma proposta que torna o aborto legal, dentro de certo limite, eu proponha falar justamente sobre maternidade. Estranho porque sempre que se debate a questão do aborto, este aparece isolado do contexto maior do processo reprodutivo. Ao meu ver, não há como discutir e entender o significado e as consequências de se ter uma lei que regule a realização do aborto, a não ser entendendo-o em face do fato ineludível da capacidade que temos, as mulheres, de fazermos novos seres humanos. Uma capacidade transcendental e única. No entanto, para que a maternidade seja considerada em toda a sua grandeza, é absolutamente necessário que a compreendamos como resultado de uma decisão, de uma escolha: Como uma opção entre outras de realização das mulheres. Nós mulheres somos seres humanos, com projetos de vida, seres de pensamento e de desejo e não podemos, sob hipótese alguma, sermos consideradas unicamente pela nossa capacidade de colocarmos na comunidade humana novos seres. Essa é uma das possibilidades que temos em nossas vidas. Mas está longe de ser a única.
Ora, a maternidade, como um ato plenamente humano, deve resultar do desejo, da reflexão e não ser apenas a realização de uma capacidade biológica, o que nos igualaria a animais reprodutores. Pensar assim não significa que toda gravidez não planejada, inesperada resultará em um aborto. Ela poderá – ou não – ser assumida e levada adiante. A consideração das mulheres apenas como mães reflete um pensamento determinista, de caráter essencialista.
Lembro que – as pesquisas o mostram – a maioria das mulheres que abortam – já são mães. Tem filhas e filhos de quem cuidam e desejam continuar a cria-l@s. E é muitas vezes esse desejo que as leva ao aborto e, tantas vezes, à morte. Mas há também aquelas mulheres cujos projetos de vida não incluem a maternidade e diante de uma gravidez indesejada tem pleno de direito de interromper esse processo gestacional. Só compreendendo a maternidade como resultado de opção e de escolha é possível entender o alcance ético de uma proposta que permite às mulheres acederem a um aborto, quando assim considerarem necessário.
Quero ainda reafirmar o que tantas vezes já dissemos. Apoiar que haja no país uma legislação sobre o aborto não é banalizar a vida. A vida não existe na abstração das afirmações retóricas. O que existe é a vida de pessoas concretas, com seus problemas, suas alegrias e dores, enfim, com suas vidas reais. Quando falamos de aborto, este, como a maternidade, não existe no vazio. Estamos falando de mulheres que tem nomes, são nossa vizinha, a mulher que trabalha em nossas casas, nossa aluna na Universidade, uma sobrinha, uma filha, uma namorada… São dignas de apoio, de compreensão. São cidadãs brasileiras que devem ter suas decisões respeitadas e seus direitos efetivados por políticas públicas adequadas.
Um 2º ponto que proponho à consideração de tod@s é que, apesar do fato inegável de que o aborto tornou-se em nosso país objeto de discussão pública, é sempre necessário voltar a algumas questões; especialmente em um contexto político em que há constantes ameaças de se violar a Constituição, retirando direitos conquistados democraticamente.
Uma dessas questões diz respeito ao alcance de uma legislação sobre ao aborto: Ela permite sua realização, em certas circunstâncias, e obriga o Estado a oferecer condições dignas e adequadas para que as mulheres não tenham sequelas ou morram nesse procedimento. Salva, portanto, a vida das mulheres. Mas a lei não obriga qualquer mulher a realizá-lo. Depende do livre consentimento dela. E pune responsáveis por um aborto realizado contra a sua vontade.
Uma outra questão: uma vez que nas últimas legislaturas temos visto uma crescente atuação política de parlamentares vinculados a igrejas e grupos religiosos, gostaria de voltar a lembrar que o Estado brasileiro é laico, respeita as religiões, assim como respeita pessoas e grupos ateus ou sem religião, e não pode guiar-se por doutrinas e princípios oriundos de uma fé religiosa. Não nos enganam discursos que se apresentam como vindos do campo científico por exemplo, mas escondem, na verdade seu caráter religioso. Decisões no âmbito do Congresso Nacional afetam a vida concreta de todas as cidadãs e cidadãos do país. O caráter laico do Estado é condição imprescindível para o pleno exercício da cidadania de todas as pessoas e para a proteção dos direitos constitucionais à liberdade e à autodeterminação. Por isso, não se pode impor a toda a sociedade a agenda moral das religiões, traduzindo-as em políticas públicas destinadas a todas as cidadãs e cidadãos do país. Seria um desrespeito à própria Constituição. Muitos dos argumentos contrários à liberdade de decisão das mulheres, no campo reprodutivo, embora se apresentem como de um campo laico, são, na verdade, a expressão de uma doutrina e de uma moral religiosa específica.
Nós, Católicas Pelo Direito de Decidir, não escondemos que baseamos nossa defesa da agenda feminista em um horizonte cristão. Por isso mesmo, dado que nossa sociedade continua majoritariamente cristã, e uma parte das e dos parlamentares seguem esse credo, retomo o princípio cristão e sempre reafirmado na Igreja Católica, por teólogos e pelos Papas. Trata-se da proposição segundo a qual o princípio norteador de decisões em todos os âmbitos da vida é, em última instância, a própria consciência. É o que fazem as mulheres que decidem abortar: Pensam, refletem, discutem e decidem por aquilo que lhes dita a consciência como o melhor caminho naquele momento, como recorda um teólogo latino-americano.
Para terminar, quero reafirmar que o aborto, antes de ser uma questão moral ou religiosa, é uma questão de justiça social. A maioria das mulheres que sofrem as consequências de sua ilegalidade são mulheres negras e pobres. É também uma questão ética de respeito á capacidade moral das mulheres de tomarem decisões sobre suas vidas, pautadas sobre valores e princípios religiosos ou não, que são legítimos e respeitáveis. O que queremos é o respeito às mulheres e a defesa incondicional de suas vidas.