A democracia é um dos bens mais preciosos que vêm sendo conquistados no Brasil, de forma lenta, às vezes contraditória, mas progressiva. As eleições, com todos os seus limites, representam um retrato da democracia formal. Trata-se de um momento privilegiado para que as diferenças se contraponham na arena política e assim se construam consensos e novas propostas para o bem do povo brasileiro.
No presente momento, nossa democracia está sendo vergonhosamente desrespeitada. Setores conservadores estão usando um discurso pseudo-religioso, totalmente baseado em falsos moralismos, para influenciar de forma ilegítima o processo eleitoral. Em nome da “defesa da vida”, utilizam-se do debate sobre o aborto para fortalecer a influência da religião nos processos políticos, sem se preocuparem com o grave risco que a ilegalidade do aborto causa às mulheres mais pobres.
Irresponsável é o líder religioso que não enxerga a realidade, baseando-se apenas em princípios abstratos que contradizem o autêntico valor da vida, com a plena dignidade que ela deveria ter. Ainda mais irresponsável é o líder político que, amedrontado frente a ameaças eleitoreiras, deixa de comprometer-se com seu dever de chefe de Estado. Um Estado laico deve respeitar todas as religiões, mas jamais pode ser regido por princípios religiosos.
Não é do interesse público o que pensa cada candidato/a sobre o aborto, mas sim o que propõe fazer como estadista, como governante, para enfrentar esse grave problema de saúde pública. Não se trata de que os/as candidatos/as façam declarações afirmando ser contrários ou favoráveis ao aborto, porque essa polarização não permite que avancemos de forma adequada na discussão sobre o tema. Ser “favorável à legalização do aborto” não significa ser “favorável ao aborto”, pois é sabido que, se o aborto sair da clandestinidade, sua prática tende a diminuir.
De toda forma, o que está em jogo de fato no atual debate não é o aborto e sim a democracia. Não está havendo um debate social sobre o aborto, mas sim uma utilização escusa do tema, que está sendo realizada de forma maliciosa, astuta e eleitoreira. Trata-se de um jogo sujo, no qual mais uma vez a vida das mulheres serve como moeda de troca!
Queremos que o grave problema do aborto no Brasil seja discutido como uma questão de saúde, este é o seu lugar, e não como um problema policial ou religioso. Não aceitamos que, por trás deste falso debate em torno do aborto, saiam de cena os sérios problemas que devem ser enfrentados: da exclusão social, da injusta distribuição de renda, da violência urbana, do baixo nível educacional, da pobreza, da moradia indigna, da desigualdade entre os gêneros, da violência contra mulheres e das más condições de saúde, entre outros.
Diante dos riscos que corre nossa incipiente democracia, conclamamos todas as forças da sociedade civil, independentemente de crença religiosa ou filiação partidária, para que se manifestem em favor da democracia e em defesa da laicidade do Estado, sem a qual o direito à expressão religiosa não será respeitada. Respeitemos nossa Constituição, sendo fiéis aos seus princípios.
Não vamos permitir que posições ideológicas e políticas, mascaradas por um falso discurso religioso em favor da vida, se imponham de forma desonesta e difamatória a um governo que se pretende verdadeiramente democrático. Não vamos permitir que este processo eleitoral envergonhe nosso país, que tem sido reconhecido internacionalmente como promotor da verdade e da paz.