Para a tradição cristã, a Semana Santa é por excelência a memória das últimas horas da vida de Jesus e sua ressurreição. Nos evangelhos, encontramos algumas narrativas sobre a paixão e a ressurreição de Jesus, interpretações feitas pelos cristãos das origens, como tentativas de compreender e dar sentido à terrível e cruel morte de Jesus.
Ao longo da história do cristianismo, tais narrativas receberam diversas interpretações. Uma das mais marcantes, é certamente aquela que as igrejas cristãs afirmam que Jesus Cristo morreu por nós, pelos nossos pecados, um exemplo supremo de auto-sacrifício.
A teologia do auto-sacrifício defende que Jesus se apresentou voluntariamente para ser crucificado como um gesto de amor e obediência a Deus, seu pai, para salvar a humanidade pecadora. Percebemos aqui uma visão espiritualista que compreende a violência e o sacrifício como reveladores de uma realidade mais elevada e mais importante que a vida e o compromisso de Jesus com a justiça. E mais importante ainda do que a vida de milhares de pessoas que são crucificadas diariamente sob as mais variadas formas de violência e opressão.
Pode-se dizer que tal interpretação do sacrifício feita pela tradição, atingiu o centro do coração da doutrina cristã ao longo dos séculos. E difundiu uma mensagem que está enraizada em uma teologia da cruz, que inspirou os ideais do cristianismo como o amor sacrificial, a humildade, a abnegação, a obediência e resignação etc.
A grande maioria das mulheres brasileiras, somos socializadas sob a influência desses ideais cristãos, que afeta profundamente a nossa vida, o que inclui até aquelas que não são cristãs. Essa socialização, quando não analisada criticamente, contribui enormemente para moldar a aceitação – com resignação – da violência impetrada contra nós.
Propomos aqui uma mudança de lentes para ler e compreender a teologia da cruz. Troquemos as lentes do “sacrifício como fonte de salvação” pelas lentes das experiências concretas das violências que são perpetradas contra as mulheres em nossas igrejas e sociedade e suas lutas para mudar tal situação.
Essa mudança de foco nos leva a ler e interpretar as narrativas dos evangelhos sobre a paixão e ressurreição de Jesus como uma consequência trágica de sua fidelidade e sua recusa a desistir de seu compromisso diante da opressão romana. E não como uma entrega abnegada à vontade de seu pai divino.
A partir dessas lentes, perguntemos à teologia da cruz:
O que a teologia cristã do sacrifício como salvação tem provocado na vida das mulheres? Ela contribui de fato para transformar a realidade de violência contra as mulheres ou para a sua manutenção? Essa teologia defende a que interesses?
O que constatamos no dia-a-dia em nossas igrejas é que as mulheres que vivem situações de violência doméstica, por exemplo, são muitas vezes orientadas pelas lideranças religiosas a – em nome da fidelidade a um sacramento – aceitar submissas os abusos. E, dessa forma, estariam supostamente seguindo os passos de Jesus, já que ele foi fiel ao sacrifício até a morte – e morte de cruz. Assim, as igrejas pregam que, para sermos como Jesus, nós temos que dar a nossa vida em obediência fiel à vontade de Deus. Mesmo que esta fidelidade possa significar violência e, em muitos casos, a morte de muitas mulheres.
No contexto sócio-histórico brasileiro, o número de registros de agressões às mulheres aumentou em 22,3% de 2007 a 2008, passando de 20.050 ocorrências para 24.523. Sem contar que esses registros não discriminam as violências por discriminações racistas, sexistas e homofóbicas, visto que a violência sofrida pelas mulheres não é somente a de gênero, mas são diversas e se multiplicam dependendo do lugar que cada mulher ocupa na pirâmide social.
Frente a este contexto, juntamo-nos às teólogas feministas, que propõem uma teologia que apoia as mulheres violentadas para atuarem historicamente com autoridade e autonomia, de forma a nomear e transformar a violência e não suportá-la em silêncio. Uma teologia que ajuda as pessoas a lidarem com a violência praticada contra Jesus e contra as mulheres e outras pessoas em nossos dias. Uma teologia que não defende o martírio de alguns e abundância e impunidade para outros.
Por isso o nosso convite é para participar nas transformações dos discursos teológicos, nas liturgias, para que estas, seja realmente apoio para as vidas das mulheres e não uma reprodução da violência.
Será que realmente o que traz a salvação é o sacrifício, a violência, a resignação, a submissão, a morte? Por que nossa sociedade, enquanto salva os ricos, condena as pessoas pobres ao impor-lhes sacrifícios insuportáveis, pesadas cruzes?
A resposta é clara: nas experiências concretas do dia-a-dia, a salvação para a vida de milhares de mulheres não está na espera de um poder onipotente, mas sim nos grupos que lutam solidariamente no enfrentamento e na resistência à violência. Tais lutas políticas podem ser encontradas em diversos grupos e organizações espalhados/as pelos quatro cantos do Brasil, que lutam para transformar a realidade brasileira das mais diversas formas de violência cometidas contra as mulheres dentro e fora de suas casas.
São essas lutas que alimentam a paixão pela justiça e a resistência à violência que podem oferecer a todas as mulheres e outras pessoas violentadas um sentido diferente para a ressurreição que celebramos nestes dias.