Neste 8 de março, o movimento de mulheres do mundo todo lembra os 100 anos de luta por autonomia e pela realização plena da nossa cidadania. No Brasil, 2010 abriu-se num horizonte de expectativas com a publicação do III Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH), pela Secretaria Especial de Direitos Humanos. Alguns setores da sociedade brasileira, expressão do pensamento mais fortemente conservador e retrógrado, reagiram negativamente ao Programa.
Este atinge interesses de proprietários de terra contrários à realização da justiça social no campo, de grupos militares identificados com os anos de chumbo da ditadura militar que não querem desvendados os crimes cometidos à época e da Igreja Católica, que não aceita a perda do seu domínio absoluto no campo religioso e nem admite que as mulheres alcancem autonomia e liberdade. Sem a possibilidade de exercer nossos direitos no campo reprodutivo não há cidadania para nós. É sempre bom lembrar que, se a biologia nos concedeu o privilégio de sermos portadoras da capacidade de gerarmos novos seres humanos, a dignidade exige que possamos decidir sobre essa capacidade. No III PNDH, consta o reconhecimento de que sem as mulheres, os direitos não são humanos e a proposição de ações coordenadas de governo que apoiem a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto. Nosso país que, nestes últimos anos vem sendo reconhecido por seus avanços no campo da economia e da sustentabilidade, pela consolidação da democracia, pela melhora das condições de vida da população mais pobre, mostrará seu respeito a acordos firmados internacionalmente em Viena, no Cairo e em Beijin ao assegurar uma legislação favorável à vida, à dignidade e à cidadania das mulheres, tornando legal o aborto.
Na defesa da vida das mulheres, é fundamental que o III PNDH seja aprovado e implementado em sua integralidade. É o que esperam as mulheres brasileiras, inclusive católicas, que não se submetem mais a ditames morais ou doutrinários que as impedem de realizar suas vidas de forma digna e feliz. Historicamente, temos lutado por isso. Nestes 100 anos, inúmeras mulheres se destacam por sua coragem em desafiar poderes, costumes, leis e normas estabelecidas. E mesmo na Igreja Católica, ao contrário do que muitas vezes se pensa, encontramos também uma linhagem de mulheres fortes e transgressoras, que enfrentaram, das formas mais diversas e em diferentes épocas, o poder político e o poder religioso. Delas somos admiradoras, herdeiras e seguidoras. Especialmente neste centenário, é bom recordarmos o que fizeram e o que disseram essas corajosas mulheres.
No século XVII, viveu no México uma mulher extraordinária: Sor Juana Inés de la Cruz. Desejosa de estudar e não se sentindo “inclinada ao casamento”, conseguiu fazer-se monja e escritora. Reconhecida por sua brilhante inteligência, atraía ao convento personalidades da época, em busca de sua sabedoria. Perseguida depois pela Inquisição espanhola, viu-se obrigada a abandonar sua biblioteca e seus instrumentos de trabalho, renunciando à busca intelectual que animava sua vida. Assinou, de próprio punho, uma autoacusação que termina com uma expressão que se tornou título de um filme biográfico sobre ela: “Yo, la peor de todas”! O auto-sacrifício de Juana lhe custou a vida.
Uma outra Joana, séculos antes, desafiou o Papa e os costumes da época. Vestiu-se de soldado e foi à guerra. A Igreja condenou-a a fogueira, para depois fazê-la santa. Ainda Joana foi a mulher que se fez Papa. Lenda, segundo muitos, realidade histórica para pesquisadoras americanas debruçadas sobre velhos arquivos, esta mulher de inteligência brilhante burlou a vigilância estrita de Cardeais e Bispos e tornou-se a primeira – e, até hoje, única – Papisa da história dessa interminável lista de homens dirigentes da Igreja. Catarina, italiana, de Siena, também declarada santa, atuou junto ao Papa e aos Bispos, admoestando-os a buscarem a paz na Igreja.
No Brasil, foi Isabel, a do Fanado, em Minas Gerais, que, no século XVIII, constituiu a casa de oração “do Vale das Lágrimas”, sem pedir licença ao Bispo. Advertida por ele, respondeu-lhe que não considerava necessária qualquer licença para viver em jejum e orações sua dedicação ao Evangelho, junto com suas companheiras.
A lista seria longa se a quiséssemos inteira. Interminável, se a ela acrescentássemos as incontáveis anônimas – leigas e freiras – que sustentam cotidianamente, com seu incansável trabalho, essa Igreja que não as reconhece.
Ao celebrar este 8 de março, a imagem forte dessas mulheres sacrificadas por sua fé, muitas vezes vencidas pela imposição de princípios doutrinários rígidos, nos vem à mente. Joanas, Catarinas, Isabéis… invocamos a força dessas nossas predecessoras. Que elas nos guardem dos ventos conservadores que sopram sobre a Igreja. Que a lembrança delas nos fortifique em nossa luta!