Católicas do Brasil: No dia 8 de março, jovens argentinas fizeram uma intervenção artística em que representavam um abortamento. Sua intenção era chamar a atenção para a questão da mortalidade das mulheres que recorrem ao aborto inseguro e para a negação de seus direitos reprodutivos. Representantes locais da Igreja Católica não gostaram e incitaram a perseguição das artistas. Os dados pessoais delas foram revelados e agora elas sofrem com assédio e ameaças nas redes sociais. Católicas da Argentina publicou uma carta reprovando a atitude da Igreja. Abaixo, você pode ler a carta na íntegra.
Argentina, 13 de março de 2017.
Por Católicas pelo Direito de Decidir da Argentina
Católicas pelo Direito de Decidir da Argentina repudia a perseguição e incitação à perseguição por parte de setores conservadores da Igreja contra as jovens que realizaram uma intervenção artística no 8 de março, data em que se lembra o crime em que 120 trabalhadoras foram queimadas vivas por reivindicar seus direitos.
Somos mulheres católicas que trabalham há mais de duas décadas pela vida e saúde das mulheres de nosso país, temos ajudado a formar parte importante dos avanços nos direitos das mulheres, sendo protagonistas de ações para o pleno exercício democrático da cidadania. Nossa espiritualidade se manifesta em respeito a todas as expressões, convencidas de que a liberdade de expressão constitui um direito fundamental das pessoas e dos coletivos em uma democracia, que deve assegurar a proteção jurídica na medida em que estas expressões não comprometam a vida ou a liberdade dos outros.
Como mulheres católicas, entendemos que as ações tomadas pela Igreja contra a performance em Tucumán, foram desproporcionais e só conseguiram alimentar o ódio e a violência. Uma manifestação que pretendeu visibilizar, através de uma metáfora, uma ideia, não constitui uma afronta direta a nossas mais íntimas crenças. Assim, perguntamos: que tipo de Igreja é a que prega o escárnio público de meninas que fazem uma representação teatral durante uma mobilização social? É esta Igreja que queremos? Aquela que se vinga de meninas, alimentando sua perseguição pública através de redes sociais e outros meios?
A Virgem Maria é uma figura representada de formas diferentes por distintos setores e ideologias. Para nós, Maria é um exemplo de maternidade livre e consentida; uma mulher valente que, ao ser consultada por sua maternidade, assumiu o compromisso que isso implicaria. Um direito que hoje em dia se nega a maioria das mulheres. Maria decidiu, escolheu a maternidade, confiando que sua decisão permitia a chegada do Messias que libertaria um povo submetido a tirania de um Império. Foi ela que acompanhou Jesus a todo momento e sua fortaleza foi amor e perdão, tal como seu filho pregava, tal como a Igreja que queremos.
Em pleno século XXI, em que se expõe diariamente milhares de garotas a vexames e violações, em que a sociedade dá claras demonstrações dos danos que a intolerância e o fundamentalismo têm gerado a nossos povos, não se pode exigir daqueles que têm outras crenças e/ou ideologias se retratem, como a Inquisição fez com Galileu Galilei no século XVI. Estas práticas constituem um claro retrocesso por meio do qual o conservadorismo rançoso nos pretende envolver e nada tem a ver com nossa espiritualidade.
Não podemos como sociedade condenar e exigir destas jovens que peçam perdão, nem persegui-las e hostiliza-las por se expressarem. Isto claramente iriam contra os ensinamentos de Jesus e Maria. Devemos também lembrar que nossa mesma Igreja em sua história de 2 mil anos cometeu feitos terríveis como incentivar e promover guerras “santas”, queimar mulheres como “bruxas”, omitir os abusos sexuais, disciplinar a sexualidade mediante tortura e exílio.
Uma performance busca mobilizar distintas construções simbólicas, dar visibilidade através de uma representação a alguns pressupostos e consensos. Também busca nos interpelar e mobilizar. Deve provocar debate e buscar respostas pelo que mobiliza e questiona. Uma intervenção artística é um modo de expressão das pessoas que supõem viver em um país livre, democrática e laico.
Não queremos que os fundamentalistas religiosos nos imponham sua moral sexual e sua única visão de mundo. Nossos corpos nos pertencem, nós desejamos e decidimos sobre nossas sexualidades, não queremos uma maternidade obrigatória e exigimos do Estado democrático e laico políticas públicas que promovam educação sexual para decidir, anticoncepcionais para não abortar e aborto legal para não morrermos. Cada mulher, organização, movimento, busca o modo de promover este debate nas ruas, nas escolas, nas casas, no Congresso, sem que isso signifique perder seu trabalho, ter que pedir desculpas ou sentir-se violentada nas redes sociais.
Responder à censura e perseguição não é mais que insistir em invisibilizar e esconder os principais conflitos e debates que são parte de nossa democracia contemporânea. Nossa comunhão é com a liberdade e com a justiça. Nossa comunhão é em solidariedade e ação em favor da libertação e autonomia das pessoas e de uma sociedade que respeite todas as crenças e os direitos de todas e todos.
Link do texto original (em espanhol): https://catolicas.org.ar/espiritualidad-religion-no-hoguera-hostigamiento/
Outra referência sobre o caso (em espanhol): https://www.marcha.org.ar/amenazas-y-persecucion-en-tucuman-hemos-venido-para-quedarnos-no-hay-vuelta-atras/
Acompanhe!
Nos próximos dias 23 e 24 de março, artistas, ativistas e feministas farão manifestações em apoio às jovens e para denunciar a censura e perseguição perpetrada pela Igreja. Abaixo a chamada que estão circulando na internet na Argentina. Para saber mais acompanhe as hashtags: #ProtestarNoEsDelito! #ElArteEsProtesta! #BastaDePersecución!