Em artigo exclusivo para Católicas pelo Direito de Decidir, Marianne Luna, integrante do Núcleo Madalenas da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT, reflete sobre o orgulho e a visibilidade da comunidade lésbica em interface com a fé católica.
“Maria Madalena, Salomé e Maria mãe de Tiago, as mulheres que acompanharam Jesus desde a Galileia até o sepulcro, foram para a casa para preparar perfumes e especiarias aromáticas” (Lucas 23, 54-56). Seriam elas, as primeiras ouvintes da boa nova e a primeira testemunha da ressureição, as mulheres que séculos depois serão queimadas vivas em fogueiras e apedrejadas em praças públicas?
É paradoxal perceber que o sagrado feminino ainda é mais facilmente associado, de forma pejorativa, à bruxaria, ao que é mal e diabólico, do que ao sacro. Faz pouco mais de 560 anos que mulheres condenadas por sua conexão com a natureza, eram atiradas em fogueiras em praças públicas, e tal barbárie era justificada com princípios cristãos, da Una, Santa e Pecadora Igreja Católica.
Eu não sei ao certo quando se tornou comum a mim, pensar que o feminino também é sagrado, não só porque Deus assim desejou e fez, mas porque o próprio Deus é. Portanto, não há parte ou versão e sim a totalidade de Deus.
O feminino é sagrado. O Sagrado é feminino.
Definir o sagrado pra mim é pensar no próprio Deus, algo que é intrínseco à divindade, ao que é santo. Ruah, o sopro e espírito da vida, consagrou Maria, tornando-a sagrada, e elas geraram Jesus. A vida veio do feminino. Olho para as mulheres da Bíblia com olhos de admiração: a decisão de Ester, a coragem de Rute, a ousadia de Maria, o espírito de Madalena. Amar outra mulher é se conectar com o divino em mim, tocar, beijar, abraçar, amar. Nesse mês de orgulho e visibilidade lésbica, celebramos nossa existência nessa estrutura política de morte.
O Projeto de Jesus está definitivamente em oposição aos projetos necropolíticos. Ser sapatão e católica é ser resistência diária dentro e fora da igreja, é viver e experimentar de perto a Santíssima Trindade. “O Patriarcado cisgênero, branco, heterossexual, continuará usando suas ferramentas de exclusão e segregação, pra dizer quem “tem direito” ao sagrado, pra controlar nossos corpos, mas minha relação com Deus é mais profunda do que o falso moralismo pregado – como escrevi, no ano passado, em uma reflexão sobre Nosso Direito ao Sagrado, a propósito deste mês da visibilidade lésbica, para a Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT.
Para toda sapatão brasileira, o mês de agosto traz marcos importantes do movimento, desde o fim da década de 70 mulheres do Brasil inteiro se organizavam em coletivos, para trazer voz a nossas pautas, no debate público e na comunidade. Em 19 de agosto de 1983 ativistas lésbicas do Grupo de Ação Lésbica Feminista (GALF), lideradas por Rosely Roth e Miriam Martinho, ocuparam o Ferro’s Bar em São Paulo, em resposta a atitude repressora que haviam sofrido semana antes. Mais tarde em 1996 no dia 29 de agosto no Rio de Janeiro acontece o 1º Seminário Nacional de Lésbicas (Senale); eventos esse que daria origem à celebração do orgulho (19) e visibilidade (29) lésbica. Nesses eventos aprendemos a importância da nossa união, como resume o panfleto do GALF sobre a ocupação: “[…] ficou claro que a democracia depende de nós mesmas! Cada uma de nós pode tentar construir um mundo melhor. Juntas, então, a força será maior”.
Historicamente fomos ensinadas: a nos calar, nos esconder, a aceitar que nos bastidores é o nosso lugar, dentro e fora da igreja. Há 25 anos atrás, mulheres do Brasil inteiro se encontravam para reivindicar seu lugar na sociedade, vieram exatamente para dar voz às nossas pautas. Os bastidores estão lotados! Está na hora de subirmos ao palco e falar, ocupar, viver, amar. É preciso realizarmos levantes e revoluções nos “Ferro’s Bares” que ainda existem e nos silenciam.
Não à toa, ressoa ainda hoje a necessidade de termos espaços seguros de fala, mesmo dentro da comunidade de fé e de luta; na Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT foi criado o Núcleo Madalenas, reunidas para empoderar e aumentar a representatividade das mulheres lésbicas, bissexuais, transgênero e pessoas não-binárias na nossa Rede Nacional; nos reunimos para partilhar experiências e promover novos debates sobre religião, gênero e diversidade, a fim de visibilizar e validar nossas experiências como pessoas de fé.
Nós, mulheres, estamos acostumadas a sentir medo. Mas não precisamos mais, porque hoje sabemos, que não estamos sozinhas. Quando penso em comunhão, na comum união, recordo-me da fala de Cristo: “onde duas ou mais estiverem reunidas em meu nome, aí eu estarei”. Somos muitas: somos Católicas pelo Direito de Decidir, somos Núcleo Madalenas. Somos muito mais que 2 ou 3, somos potências que transbordam em encontros de lágrimas e gargalhadas, somos o mover do espírito de vida, a Ruah que habita em mim e em nós, principalmente quando estamos juntas.
MARIANNE LUNA é psicóloga formada com graduação sanduíche pela UPM (BR) e UC (PT). Ativista LGBTQIA+ negra, feminista, católica, atuante nacional do MOPA LGBT: Marielle Franco, do Núcleo Madalenas da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT e Psicóloga do Psis pela Diversidade, com apoio do Evangélicxs pela Diversidade.