#Especial8M | Por Mari Malheiros | Em 8 de março de 2020, nós, mulheres católicas feministas, nos aglomeramos pela última vez com nossas companheiras de luta que comungam conosco a luta pela vida e liberdade das mulheres. Um ano depois, não poderemos nos juntar e ocupar as ruas porque ainda vivemos sob os impactos da pandemia. Neste ano difícil, carregamos conosco a sensação permanente de luto. O novo coronavírus provocou, até este momento em que escrevo, mais de duzentas e sessenta mil (260.000) mortes. Estes números são corpos de pessoas que amamos.
Neste dia internacional das mulheres, infelizmente, tem choro e luto. Nos solidarizamos com a dor da perda precoce de tanta gente por esse vírus, mas também há indignação e luta contra a cumplicidade dos fundamentalismos cristãos, que escolheram salvar igrejas, governo genocida e mercado, enquanto milhões de vidas estão morrendo desamparadas, gritando: “Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonastes?”
Como mulheres católicas, é nosso dever e nossa salvação pautar o #ForaBolsonaro e denunciar que o discurso fundamentalista religioso e suas práticas são o alicerce e não mera “cortina de fumaça”, como parte da oposição e da esquerda insiste em definir. É através de um deus branco, macho, hétero e rico que Bolsonaro chega até homens e mulheres, no campo ou na cidade, nos centros ou nas periferias. Os seus mercadores nos templos fazem essa mediação nas igrejas, mas no governo estes e estas mercadoras também estão presentes, ignorando o Estado laico e a pluralidade religiosa, social e racial do Brasil. No governo, a principal figura que representa este fundamentalismo e queremos denunciar é a ministra Damares Alves.
Se Ricardo Salles passa com a boiada, é Damares quem abre a porteira. A necessidade de catequizar indígenas e quilombolas possibilita o acesso do governo às terras demarcadas. Por trás do discurso fundamentalista da liberdade religiosa – e é fundamentalista porque só é válido quando se trata do cristianismo – Damares foi peça chave para que o atendimento a estes povos na pandemia fosse negligenciado. Novamente, o discurso cristão é cúmplice de um extermínio indígena, tal como é cúmplice da morte de idosos/as, doentes, pessoas com deficiência, pessoas em situação de rua e famílias que habitam localidades urbanas e rurais vulneráveis, que gritam a fome, a pandemia e a pobreza em seus corpos, mas que são ignoradas.
Também não podemos esquecer o descaso com os direitos das mulheres. Em seu discurso na Organização das Nações Unidas (ONU), Damares teve a audácia de dizer que o Ministério da Mulher executou o maior orçamento dos últimos cinco anos. Conforme apresentado em reportagem do portal Gênero e Número, a ministra poderia ter gasto R$ 106.000.000,00 (cento e seis milhões de reais) com a pasta, mas o gasto efetivo com políticas públicas para as mulheres foi de apenas R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais) em 2020. Em um ano em que os casos de violência contra as mulheres aumentaram e a feminização da pobreza explodiu, novamente, o deus defendido por esse governo escolheu sacrificar mulheres, enquanto homens privilegiados gozaram e gozam os benefícios da fé e do mercado.
Precisamos lembrar da cumplicidade de Damares com grupos católicos e evangélicos, que tentaram impedir o aborto legal de uma menina de 10 anos. Uma menina que teve seu corpo abusado, violentado, tratado como objeto. Não bastando os estupros aos quais foi submetida, queriam fazê-la mãe aos 10 anos. Cristãos jogaram pedras não em uma mulher adúltera, mas em uma criança pobre, negra e violada. Uma menina que, em nome da fé, quase teve seu sagrado direito ao aborto negado.
Junto com Damares, denunciamos também os padres, bispos, pastores e todos e todas que são cúmplices dessas políticas, sendo mercadores da fé, e que falam nos púlpitos do feminismo e do “esquerdismo”, nos condenando ao “fogo do inferno” com a defesa de uma vida universal e abstrata, que grita hipocrisia. Mas estes se calam diante da violência doméstica, obrigam a permanência de mulheres em relacionamentos abusivos e não se compadecem das empobrecidas, negras, periféricas, explorando o seu trabalho nas comunidades e o seu dízimo.
Como católicas feministas, escolhemos a vida dos corpos que decidimos adorar e amar. Não são abstratos ou hóstias. São corpos vivos, que pulsam nas comunidades religiosas: são as ministras da liturgia e eucaristia que sofrem violência doméstica, sendo ignoradas; são as evangélicas que batem nas nossas portas com as Bíblias, ainda que muitas vezes não tenham tido acesso ao pão no café da manhã; são as pastoralistas que encontram caminhos fora da hierarquia para promoção da solidariedade, mesmo em uma pandemia; são as pastoras que têm uma palavra de acolhida e amor diante de um aborto. Como lembrou o samba sagrado da Mangueira de 2020, o Jesus da gente também tem corpo de mulher e é com ele que nos abraçamos neste oito de março e sempre.
Mari Malheiros: Militante da Marcha Mundial das Mulheres, advogada popular, mestranda em Integração Contemporânea na América Latina na Universidade Federal da Integração Latino-Americana e ativista de Católicas pelo Direito de Decidir.