Por Tabata Tesser – Rede de Ativistas de Católicas pelo Direito de Decidir
A Rede de Ativistas de Católicas pelo Direito de Decidir participou de um encontro online com Sonia Guajajara, coordenadora nacional da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Ouvir os conhecimentos dessa importante liderança indígena nos instigou a reflexão sobre esses tempos de destruição, vivenciados na atual conjuntura política. Seu chamado pela Terra foi recebido com vibrações feministas pelas ativistas que ali estavam, oriundas de distintos estados do país. O testemunho de Sonia Guajajara nos instigou a rascunhar desafios para a luta das mulheres em 2022 e a resgatar alguns episódios que já nos atravessaram.
Começamos o ano com a partida de nossa rainha da música brasileira, Elza Soares. Suas canções e sua vida sempre estiveram à serviço da denúncia das violências raciais e de gênero. Elza, presente! Ainda em janeiro assistimos o brutal assassinato de Moïse Kabagambe, um imigrante congolês que teve a sua vida interrompida por defender seus direitos trabalhistas, enquanto trabalhava em um quiosque no Rio de Janeiro. Uma morte marcada pelo racismo e a xenofobia estrutural. Em fevereiro tivemos a notícia – feliz em meio aos tantos dilúvios políticos – da nossa hermana Colômbia, que descriminalizou o aborto até a 24ª semana de gestação. Uma vitória da luta em defesa da causa justa.
Em março, o mês das mulheres, fomos confrontadas com a divulgação de um áudio, misógino e machista, de um ex-deputado bolsonarista sobre as mulheres ucranianas. Foi a pressão organizada da sociedade que fez com que ele renunciasse ao seu posto parlamentar. Para aqueles que pensaram em nos silenciar, foi em março, nas ruas e nas lutas, que houve a demonstração de força do movimento organizado de mulheres. Nos cinco cantos do país, as mobilizações do 8 de março, Dia Internacional de Luta das Mulheres, reuniram sonhadoras que reivindicavam um país sem Bolsonaro, sem machismo, sem racismo, sem LGBTfobia e sem fome. Já em 14 de março o país se levantou, ainda com um nó na garganta, para cobrar justiça por uma pergunta que segue sem respostas: quem mandou matar Marielle Franco e por quê?
Em abril, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou dados demonstrando que o feminicídio deixou 2.300 pessoas órfãs no Brasil em 2021. O Brasil é o 5º país que mais mata mulheres no mundo. Seguiremos em luta pelo fim do feminicídio, do transfeminicídio e do lesbocídio. Ainda em abril a imprensa, em tom condenatório, foi tomada pela discussão do aborto quando o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) afirmou que o debate precisava ser compreendido como uma questão de saúde pública. O movimento de mulheres reafirmou, a partir da longa trajetória de luta por autonomia, que o aborto é uma reivindicação democrática e que deve ser enfrentada no âmbito da justiça social. As ricas pagam e as pobres morrem. Legalizar o aborto, para nós católicas feministas, é defender a vida. Sem aborto legalizado não existe democracia.
Ainda em abril, oito mil lideranças de 200 povos indígenas se reuniram em Brasília para o 18º Acampamento Terra Livre (ATL). A mobilização denunciou a gestão do presidente Bolsonaro, que tem atuado para legalizar organizações criminosas em territórios indígenas e originários, dando poder e legalidade à ações violentas de garimpeiros, madeireiras, pecuaristas, milicianos e grileiros. Frente a este desmonte, lideranças indígenas organizaram, a partir do acampamento, um chamado para aldear a política. Diferentes mulheres indígenas anunciaram suas candidaturas ao pleito das eleições de 2022. Abençoadas pelo o canto e a reza, prometem colorir a capital federal de urucum e jenipapo. É a chance de alternância de poder, já que historicamente os eleitos do poder são, na sua maioria, homens brancos, velhos, endinheirados e cristãos fundamentalistas.
Escrevemos este texto em maio. Para quem pensou que as lutas por justiça pararam por aí, fomos negativamente surpreendidas com a notícia de uma criança de 12 anos, morta após ser estuprada por garimpeiros na região de Waikás, em Roraima. Não bastasse o silêncio institucional do governo Bolsonaro, assistimos o incêndio e o desaparecimento de toda uma comunidade Yanomami que, diversas vezes, denunciou a morte da menina. A pergunta urgente hoje é: “cadê os Yanomami?”. Queremos justiça!
O início de 2022 tem se dividido para nós, católicas feministas, entre a crucificação e a ressurreição. No estado legal, as crucificações se dão pelas faces violentas que se expressam no genocídio da população negra, na criminalização do aborto, no não reconhecimento das terras indígenas, no silenciamento do judiciário ao interrompimento da vida de uma vereadora eleita etc. No estado paralelo, há as crucificações que ocorrem com o apoio do atual Governo Federal à invasão de territórios indígenas, ao aumento exponencial do armamento, à aprovação de “orçamentos secretos” e à utilização do método do ódio como política.
São as mulheres subalternizadas que têm vivido diretamente, em suas peles e territórios, as ações violentas do estado legal e do estado paralelo. Do corte de recursos públicos, passando pela criminalização do direito de decidir e a normalização do feminicídio, são as mulheres as mais atingidas nesse sistema ruído. Lembremos que a COVID-19 já levou mais de 664 mil brasileiros e brasileiras, e que foram as mulheres, a partir do trabalho do cuidado doméstico, assistencial, hospitalar, psicológico, pastoral etc., que sustentaram o Brasil na pandemia.
A ressurreição, de substantivo feminino, pode ser para nós a “chave da esperança feminista” – como provoca Ivone Gebara e Débora Diniz – para continuarmos atravessando este ano tão desafiador. Em meio a tantos dilúvios religiosos, políticos e sociais, que façamos valer a nossa ressureição feminista. Diferente do que propõe a teologia moral-doutrinal, com uma ressureição centrada em um único alguém, divino-homem, a ressureição feminista vai na linha oposta: é coletiva, orientada pela celebração da alegria e da justiça social. Façamos como Sonia Guajajara nos provocou: é preciso reflorestar as mentes e aldear a política. É preciso denunciar as injustiças e exercitar a desobediência criativa como prática política. Assim, com a ousadia necessária, e ouvindo as mulheres do nosso tempo, faremos a travessia de 2022 buscando enterrar não só o bolsonarismo, decepcionadamente disfarçado de cristão, mas tudo o que esse projeto de morte representa para nós, mulheres.