Artigo: Equívocos teológicos que nos custam caro (Mary Hunt)

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Por Mary E. Hunt. Teóloga feminista. Ph.D. Co-diretora da ONG WATER (Women’s Alliance for Theology, Ethics and Ritual). Tradução: Lula Ramires

Os fatos parecem não estar em discussão: um homem de Vitória, Espírito Santo, no Brasil, estuprou sua sobrinha de 10 anos de idade. No momento em que sua gravidez foi descoberta, o judiciário local declarou que ela tinha ultrapassado quatro dias do limite e o feto alguns gramas acima do peso com o qual se permite fazer um aborto. Foi transportada a 1.600 km de distância, a Recife, Pernambuco, onde, nestas circunstâncias, ocorreu o aborto tal como previsto na legislação brasileira.

Num mundo decente e justo, o perpetrador deste ato moralmente repreensível do estupro seria julgado, condenado e internado numa instituição psiquiátrica onde obteria ajuda para a sua reabilitação como pessoa. A criança deste caso, que relatou que o tio a estuprava constantemente desde que tinha seis anos, receberia o tratamento médico necessário, o atendimento psicológico que merece, além da privacidade para lidar com esta situação. Ao invés disso, foi negado à garota atendimento médico com base numa tecnicalidade. Ela teve que viajar uma distância enorme, o que significou que sua gravidez prosseguia até o momento em que o aborto foi finalmente realizado.

Diversas pessoas se juntaram em frente ao hospital para expressar seus pontos de vista a favor e contra o procedimento. Uma pessoa que milita contra o aborto, que tinha trabalhado no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do Presidente Bolsonaro, divulgou o nome da criança à imprensa. Seu curto tempo de vida, já virado de ponta cabeça, foi também virado do avesso.

Observo este caso estando distante dele, mas ele ressoa com outros exemplos odiosos do modo de pensar e agir patriarcal. Sou uma cidadã norte-americana, sou uma teóloga católica feminista e sou mãe de uma filha adolescente. Meu país está envolvido em lutas mortais devido ao racismo estrutural. Temos o maior número de mortes por Covid-19 no mundo porque, tal como no Brasil, a resposta do governo foi inadequada e absurda. Temos 30 milhões de pessoas desempregadas enquanto as ações na Bolsa de Valores não param de subir. Isso é parte de um contexto global no qual este incidente está colocado. Vivemos tempos conturbados em que os equívocos teológicos só pioram as coisas.

Três anos do governo de Trump, a retórica que nega o direito de decidir é batizada e confirmada pelos bajuladores religiosos como o cardeal Timothy Cardinal Dolan. Os bispos católicos dos EUA fazem vista grossa às graves políticas de imigração de Trump, à injustiça econômica para com pessoas empobrecidas e à retórica racista simplesmente porque o Presidente professa uma posição contrária ao aborto. É este fetiche em relação ao feto que tornam situações terríveis como esta da garota no Brasil muito pior. Tenho visto estas dinâmicas se multiplicarem, sendo que a ação dos bispos católicos coloca mais lenha na fogueira ao invés de agirem como pastores. Questiona-se profundamente se o ministério de tais bispos é de fato adequado.

No caso ocorrido no Brasil, o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Arcebispo Walmor de Oliveira, de Belo Horizonte, emitiu a seguinte opinião*: “A violência sexual é algo terrível, mas a violência do aborto é injustificável, considerando-se todos os recursos existentes e disponíveis para garantir a vida das duas crianças.” Permito-me discordar dele. A violência sexual e tudo aquilo que está ao seu redor é tão terrível que um aborto não apenas é justificado, mas também algo a ser recomendado neste caso, a despeito de quaisquer recursos que possam existir para a criança (singular) envolvida. Um crime grave e doloroso torna-se ainda pior em função da análise teológica e das prioridades que prolongam o sofrimento e sinalizam uma mensagem incorreta sobre o que está em jogo.

Primeiro, a questão ética primordial neste caso não é o aborto, mas a violência sexual. Não foi uma coisa que ocorreu uma única vez, mas, de acordo com a menina, o tio abusou dela sexualmente durante anos. Onde estavam os bispos nestes momentos? É certo que os tribunais condenarão, mas a realidade é que nenhuma criança de 10 anos deveria sequer saber o que é uma agressão sexual, muito menos por quanto tempo a vivenciou. O que aconteceu com ela foi um flagelo.

Gravidez aos 10 de idade, o que seria um ano antes de muitas garotas começarem a menstruar, é um evento biológico e psicológico para o qual nenhuma criança está preparada. Não há recursos suficientes no mundo que justifiquem sobrecarregar uma criança com tal experiência. A questão em tela é o bem-estar da criança, não de duas crianças, mas de uma criança que se encontra num estado físico e psicológico de extrema vulnerabilidade. Concentrar-se naquela garota ajuda-nos a priorizar o que deve ser feito e por quais motivos. Recorrer a conceitos abstratos tais como “direito à vida,” “aborto solicitado,” “o feto é uma pessoa” e coisas do tipo distorcem a discussão teológica afastando-a da realidade pastoral em questão e aproximando-a de uma norma paroquial e patriarcal que viola uma vez mais o direito de uma mulher grávida.

Falando claramente, há apenas uma criança que sofreu abuso neste caso, não duas como os bispos colocaram. O feto simplesmente não é uma criança independente do quanto os bispos desejariam que fosse o caso. Não há consenso de quando a vida começa, mas há consenso de que as crianças devem ser criadas e amadas, não violentadas.

Em segundo lugar, contra o Arcebispo e seus pares, o aborto é mais do que justificado nestas circunstâncias. De fato, a justificativa não é necessária. Por gerações, as mulheres têm sido coagidas a “justificar” suas escolhas reprodutivas mesmo quando são estupradas. São os bispos católicos que não engravidam, que precisam ter a coragem de não fazer nada a não ser apoiar esta criança em seu momento de profunda angústia. Considerando-se que nenhum deles estará envolvido em cuidar e educar uma criança que seria o resultado deste crime, não têm, portanto, nenhum direito de proclamar o que a pessoa mais agudamente afetada deveria ou não fazer.

Agora que o nome da garota veio a público, seria apenas uma questão de tempo que o público ficasse sabendo do bebê recém-nascido e bisbilhotasse sua vida, um fardo indescritível a impor a qualquer criança e sua família. Ninguém pode afirmar com certeza quando a vida humana se inicia. Mas podemos afirmar com absoluta certeza quando cessa o tratamento digno e humanitário. Obrigar uma criança a ir até o fim com uma gravidez contra sua vontade e seu bem-estar é, claramente, algo desumano.

São os bispos que precisam “justificar” qual é o seu posicionamento moral para exprimir uma opinião, que autoridade eclesial possuem para tentar fazer valer sua norma. Se se dessem ao trabalho de atualizar sua teologia moral, constatariam que, na pós-modernidade, quando as mulheres já se tornaram participantes integrais e livres da sociedade, as mulheres devem avaliar e decidir suas respostas não num vácuo, mas em meio à devastação provocadas pelo patriarcado. Os bispos logo entenderiam que o aborto é visto por ângulos muito diferentes quando colocado em termos científicos contemporâneos e à luz da opressão feminina do que quando é encarada com os olhos da sua cosmologia medieval. Uma gravidez não é algo a ser avaliado, mas sim uma relação que deve ser respeitada numa constelação familiar da qual os bispos não participam. Mulheres pobres e jovens – pretas, pardas, indígenas – sofrem estes abusos com muita frequência. Não há desculpa para piorar a situação ignorando a realidade da vida destas mulheres e as escolhas que fazem para sobreviver.

Os bispos poderiam aprender muito com as mulheres negras que desenvolvem uma abordagem baseada na justiça reprodutiva**. Por justiça reprodutiva entende-se “o direito humano a manter a autonomia pessoal do próprio corpo, a ter filhos ou a não ter filhos e a educar nossos filhos e filhas em comunidades seguras e sustentáveis.” Isto ajudaria os bispos a compreender que há muitas boas opções, entre elas o aborto, em situações difíceis.

Em terceiro lugar, o abuso infantil é outro elemento importante neste caso. Refiro-me ao abuso físico da jovem garota por seu próprio tio. Mas refiro-me também ao abuso que militantes anti-aborto despejaram sobre a menina ao divulgar seu nome. Adicionaram um enorme desgaste à sua personalidade infantil ao protestarem contra a escolha que ela e sua família fizeram. Estas pessoas também abusaram dela, obrigando a tornar pública uma decisão que era privada, uma estratégia de autodefesa acusada de atividade criminal.

Se por um lado estas pessoas agem por conta própria, é importante, por outro, sublinhar que suas consciências são formadas e encorajadas pelo clero católico romano que considera o aborto a questão moral mais relevante. Os bispos dos EUA proclamaram o aborto a “prioridade preponderante”***, mais importante do que desigualdade econômica, o racismo, o desastre ecológico, a guerra e outros temas. Tal simplicidade teológica, que é também uma cumplicidade teológica, permite que deixem de lado a violência sexual, o abuso infantil, o racismo, a pobreza, a falta de atendimento à saúde, a educação e tantos outros fatores presentes num caso como este. A teologia dos bispos deixa de fora uma análise estrutural interseccional que os problemas mais difíceis exigem. O resultado disso é que os bispos cometem graves equívocos. Quando governos e parte da sociedade seguem estas posições estritamente, os pontos de vista antiquados e ultrapassados dos bispos custam muito caro na vida das pessoas.

Por último, esta trágica situação não pode ser redimida por uma análise simplesmente. O cuidado humano e a compaixão figuram enormemente. Entretanto, há coisas que podemos aprender prosseguindo adiante. Uma delas é que a justiça reprodutiva é um bem moral. Quando se evitam a dor e sofrimento adicionais, quando mais vidas são poupadas aos se combater os estigmas sociais, quando os homens deixam de controlar as mulheres, a justiça aumenta. Quando as mulheres têm condições de fazer as escolhas que são as melhores para si mesmas e suas famílias, aborto e a criação dos filhos aparecem entre as muitas maneiras com as quais as mulheres escolhem a vida.

Equívocos teológicos impõem um custo elevado. Os bispos que têm perpetuado a ideologia de que o aborto é pior do que a violência sexual, que não se justifica em hipótese alguma, que os recursos para criar os filhos de algum modo atenuam a tragédia, suas palavras soam vazias. No mundo real, em que jovens garotas são estupradas, as famílias se veem obrigadas a lidar com as consequências, dentre elas uma criança a mais para cuidar e alimentar. Quando crianças são abusadas, o que se exige é uma teologia da misericórdia, da compaixão e da justiça fundamentada numa análise complexa dos reais problemas sociais.


*  No texto original em inglês, Mary Hunt fornece o link para uma matéria, também em inglês, sobre a fala de Dom Walmor: https://cruxnow.com/church-in-the-americas/2020/08/case-of-10-year-olds-abortion-in-brazil-further-polarizes-the-country/

** Menção ao site Sister Song, onde há um texto em inglês sobre justiça reprodutiva. Disponível em https://www.sistersong.net/reproductive-justice

*** Matéria (em inglês) sobre a decisão dos bispos norte-americanos de considerar o aborto “prioridade preponderante” nas eleições de 2020. Disponível em: https://dailycaller.com/2019/11/12/abortion-catholic-bishops-usccb/