Perla C. Doneda*
Tudo o que sabemos até hoje sobre Maria se encontra nos raros episódios narrados pelos Evangelhos e Atos dos Apóstolos e no desenvolvimento de como a imagem de Nossa Senhora foi sendo construída ao longo do tempo pela Igreja Católica Romana. E, por isso, antes de entrarmos em detalhes sobre como a imagem de Maria e uma leitura feminista se articulam, é preciso retomar um contexto histórico.
Tudo o que temos sobre Maria, a mãe de Jesus – ou melhor, boa parte da crença em Nossa Senhora a Mãe de Jesus e mãe de Deus – origina-se dos apócrifos, isto é, nos textos que não foram considerados sagrados e por isso não estão dentro da Bíblia. A devoção popular a ela foi construída na vida cotidiana da igreja primitiva ao longo dos quatro primeiros séculos da era cristã.
Frei Jacir de Freitas Faria, que se debruçou sobre a história de Maria, afirma que “a leitura paralela, a apócrifa, recolheu importantes elementos marianos já no século II, como a pureza, a virgindade e a santidade, os quais serviram de base para os dogmas marianos posteriores”. No século IV reforçou-se esse posicionamento, acrescentando que Maria era a Mãe de Deus e de nosso Salvador, bem como teria sido assunta aos Céus, tornando-se a primeira mortal a ressuscitar, sem passar pela morte.
Assim, as atribuições e devoções marianas vão sendo alimentadas junto ao povo até o século XI. Neste contexto, a Mariologia Social, a Virgem Maria como conhecemos hoje é cooptada pelas guerras em defesa da fé e, sobretudo, nas conquistas territoriais – fase essa da colonização das Américas. Faria aponta que “com os colonizadores, a Virgem Maria que prevalece é: a de poderosa protetora dos navegantes, a Nossa Senhora da Boa Viagem e a de protetora na hora da morte.”
Já nos séculos XV ao XIX, a devoção à Dormição de Maria chegou ao Brasil e com ela surge a Irmandade da Boa Morte. Depois, no século XX, as devoções crescem, as congregações religiosas se intitulam “sob a proteção de Maria”, bem como alguns outros movimentos laicos. Porém, não podemos esquecer que temos o movimento protestante nesse mesmo período da colonização, portanto temos Lutero contestando que tudo que se dizia sobre Maria não estava na Bíblia, o que de fato era uma verdade, pois foram os apócrifos que construíram sua imagem.
Mas, então, o que dizem as teólogas feministas?
Mas o que nós, feministas e religiosas, queremos dizer quando repetimos esse desenvolvimento histórico da mariologia? A princípio, queremos mostrar que as experiências vividas sob um discurso religioso funcional e intencional é capaz de criar verdades condicionadas por fatores culturais, políticos, sociais e morais nas diferentes épocas, cujo sentido era defender determinados interesses.
No livro As origens cristãs a partir das mulheres a teóloga Elisabeth Schussler Fiorenza descreve e analisa de forma pormenorizada e fundamentada como foi sendo construída e sedimentada a visão e as relações de poder hierárquica patriarcal dentro do Cristianismo. A partir disso, ela demonstra o quanto isso afetou a relação do papel das mulheres no início do movimento cristão e o quanto essa estrutura patriarcal inviabilizou e excluiu a participação das mulheres já nos primeiros séculos.
Além de desconstruir as relações de poder patriarcal dentro do Cristianismo das Origens, Fiorenza mostra que as mulheres também participavam deste movimento como lideranças e exercendo ministérios como diáconos, discípulas, profetisas e apóstolas, dentre outros. Para a teóloga Rosemary R. Ruether em seu livro Sexismo e Religião também podemos acompanhar como as mulheres foram sempre colocadas à margem da sociedade, especialmente em contexto e universo religioso.
Além de demonstrar o sexismo existente, Ruether propõe a construção de sistemas de relações mais igualitárias nos espaços religiosos. Nas diversas obras da teóloga brasileira Ivone Gebara, também encontramos o mesmo movimento de desconstrução das relações de dominação patriarcal. Em Mulheres, Religião e Poder ela detalha o quanto as mulheres são colocadas fora dos espaços de poder.
Mostrar que os textos apócrifos foram bem-vindos quando serviram a um propósito à Igreja nascente é um aspecto relevante. Sobretudo hoje que percebemos uma rigidez quanto ao seguimento da tradição e de seus dogmas fixos, incapazes de serem superados em épocas tão distintas. Podemos reconhecer que, em um primeiro momento, eles buscaram resolver as angústias, as experiências de vida das pessoas de fé. Depois, essas devoções foram sendo cooptadas pela Igreja e assim tomando formas que não correspondem às realidades das mulheres da contemporaneidade.
Reafirmo com Fiorenza que é necessário uma “marialogia”, ou seja, uma busca constante em rever Maria construída pelos homens, como uma única mulher, um único modelo, uma única vocação, a da maternidade e da virgindade. Esta visão não leva em conta todas as mulheres, pois ignora a diversidade e as múltiplas formas de ser mulher: negras, indígenas, brancas, amarelas, pertencentes às diversas classes sociais, expressando a diversidade sexual que está presente nas igrejas e no mundo.
Ruether, já citada neste texto, também afirma que “se os símbolos de uma religião não expressam um todo é preciso ser reformulado, como foi feito durante toda a história, só que, segundo o interesse de homens brancos, europeus, heteros e nobres. Se um símbolo não fala autenticamente à experiência, torna-se morto ou precisa ser alterado para fornecer um novo sentido.”
Nós, teólogas feministas, não queremos “destruir” ou deturpar a imagem de Maria, a mãe de Jesus, mas sim, utilizar as perspectivas feministas para trazer luz para nossos dias. É necessário dizer que, como mulheres, como corpos que experimentam as inúmeras violências do mundo patriarcal, como corpos capazes de gerar e nutrir, somos capazes de (re)dizer a história das mulheres, inclusive a de Maria.
Somos capazes de dizer de tantas Marias de nossos dias, das suas dores, das suas alegrias, das suas exclusões, mas também de suas lutas e conquistas. Do quanto ainda hoje as mulheres são cooptadas pelos interesses patriarcal, capitalista, extremamente racista e sexista no caso das Américas, colonialista em sua estrutura.
*Perla C. Doneda: Teóloga, Mestra e Doutoranda em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo.