‘Relacionamento conturbado’. Conturbadas ficamos nós com a perturbadora facilidade com que alguns jornalistas encontram eufemismos criativos para se referirem aos casos diários de violência contra nós mulheres. Assim como ficamos abaladas com a perversidade da sociedade que ignora nossos gritos de socorro.
Nesta segunda-feira, dia 26 de janeiro de 2015, infelizmente não nos surpreendemos com a notícia de que uma jovem mulher, de 24 anos, que vinha sofrendo violência doméstica, tinha buscado ajuda das autoridades de segurança e poder público, e de que ninguém tinha feito nada.
A moça é Samara Alves da Silva que durante 7 anos viveu com Marcos Aurélio Almeida Santos, e com ele teve quatro filhos. Em depoimentos à polícia, vizinhos afirmaram que o casal brigava muito, que Marcos era agressivo e autoritário. Com base na Lei Maria da Penha, Samara denunciou Marcos Aurélio duas vezes e pediu proteção à ‘Justiça’, mas nada foi feito. Recentemente se separaram. Marcos não aceitou e arquitetou a morte simbólica de Samara. No último final de semana, Marcos escreveu uma carta de despedida para a ex-mulher, pegou seus filhos para ‘passear’ e intencionalmente bateu de frente com uma carreta na BR 0-70.
A despeito de todas as evidências deste caso de violência extrema contra uma mulher e de todos os outros casos de que tem notícia, os jornalistas continuam romantizando os crimes misóginos escrevendo matérias com expressões absurdas como: “foi o desfecho de uma história familiar e amorosa conturbada”, “ele matou por amor”, “ele perdeu o controle emocional”, etc.
Perguntem à mulher que sobreviveu a ataques machistas se ela realmente acha que aquilo era amor? Façam-nos um favor: apenas parem de escrever essas sandices!
Marco Aurélio não matou Samara, mas tirou-lhe seus filhos. Esta mulher carregará esta cruz para o resto da vida, se ela sobreviver ao trauma psicológico que tudo isso causou.
Todo dia a gente fala a mesma coisa: todos os anos cerca de 5 mil brasileiras morrem por serem mulheres. Os assassinos? Seus companheiros. Não, não. Não é papo de feminista louca não. Leia um resumo aqui para facilitar: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/130925_sum_estudo_feminicidio_leilagarcia.pdf
É por isso que comemoramos, em 2014, a aprovação no Senado do projeto que tipifica crime de feminicídio. Àqueles que se perguntam se concordamos com o endurecimento da pena aos agressores, respondemos que não. Para nós, este sistema de justiça e carceragem no Brasil é cruel, medieval e penaliza sobremaneira homens jovens, negros e pobres. Mas consideramos que o feminicídio deve ser estancado, e que os projetos que podem contribuir para isso devem ser discutidos e pensados em todos os níveis.
Apesar de todo esforço do movimento de mulheres em dar visibilidade para esta tragédia, a sociedade finge não enxergar o machismo e o perpetua com requintes de ignorância e crueldade. Não à toa, os vizinhos do casal consideravam este assassino um ‘paizão’! Paizão? Pelo amor de Deus, mas afinal de contas que conceito é este de pai? Pai não é aquele que cuida das crianças? Da saúde física e mental delas? Que brinca com elas? Que é companheiro da mãe delas? Que é presente e atuante nas tarefas cotidianas? Pois então, minha gente, Marcos Aurélio não era uma ‘paizão’. É sintomático que os vizinhos do casal considerem este homem como ‘paizão’. Porque nossa sociedade está contaminada pelo machismo! Paizão é aquele que cuida da sua família, não aquele que espanca sua mulher e expõe crianças à violência. E se alguém ainda tiver dúvidas sobre o que é ser um, sugerimos conhecer o trabalho do pessoal do Instituto Papai.
Jornalistas, ao criarem este monte de eufemismos para contar as histórias de mulheres violentadas e mortas, contribuem com esta epidemia misógina que nos ceifa vidas. Autoridades de segurança e instâncias do poder público que não nos protegem quando pedimos ajuda também têm sua parcela de responsabilidade.
Desculpe-nos o desabafo, mas hoje estamos tristes e cansadas, e às vezes perdemos a paciência.