No país negro e racista
No coração da América Latina
Na cidade do Recife
Terça feira 2 de junho de dois mil e vinte
Vinte e nove graus Celsius
Céu claro
Sai pra trabalhar a empregada
Mesmo no meio da pandemia
E por isso ela leva pela mão
Miguel, cinco anos
Nome de anjo
Miguel Otávio
Primeiro e único
Trinta e cinco metros de voo
Do nono andar
Cinquenta e nove segundos antes de sua mãe voltar
O destino de Ícaro
O sangue de preto
As asas de ar
No país negro e racista
No coração da América Latina
(2 DE JUNHO. Letra e música de Adriana Calcanhotto)
No início desse texto, sobre Justiça Reprodutiva e Fé, evocamos a música recém-lançada pela cantora e compositora Adriana Calcanhotto, que faz alusão à morte do menino Miguel Otávio, de apenas 5 anos, em Recife/PE. Filho de Mirtes, mulher negra, periférica, empregada doméstica, Miguel morreu ao cair do 9º andar de um prédio, por falta de cuidado e empatia da patroa.
O termo “justiça reprodutiva” ainda é pouco utilizado pelos movimentos sociais, feministas, e que trabalham na perspectiva dos Direitos Humanos. É uma chave importante de leitura e compreensão do universo que envolve a mulher. Promover o debate do tema da justiça reprodutiva e fé torna-se tarefa audaciosa no atual cenário político, social e religioso brasileiro, que sobressai o obscurantismo, os conservadorismos e os fundamentalismos diversos. Estão imbricados na discussão os nossos sistemas estruturalmente excludentes: racista, patriarcal, heteronormativo, classista e, ainda, colonial.
A justiça reprodutiva pode ser considerada uma ferramenta teórica descolonizadora (dos corpos, das mentes e dos sistemas) e interseccional (inclusão). Porque as principais protagonistas são as mulheres periféricas subalternizadas e oprimidas por um amplo espectro de hierarquias reprodutivas. Tal conceito desvela a desigualdade social, racial e de classe discutindo como que cada grupo de mulheres dispõe de diferentes oportunidades de controle à sua reprodução.
O conceito de justiça reprodutiva contribui para ampliar a discussão do acesso aos Direitos Humanos em sua completude. Não diz respeito somente a opção pela interrupção voluntária da gravidez, mas também ao domínio e a autonomia do próprio corpo: o direito de decidir pela maternidade ou não, de quantos filhos deseja ter e quando tê-los. O uso de métodos contraceptivos, o direito de reproduzir com segurança e dignidade. E ainda o acesso à educação para os filhos em todas as suas fases, ao lazer, à alimentação digna, educação sexual nas escolas, moradia e trabalho, entre outros direitos.
De acordo com a feminista afro-americana Loreta Ross, “justiça reprodutiva é o completo bem-estar físico, mental, espiritual, político, social e econômico das mulheres e meninas”. Diante da descrição proposta por Ross, entendemos que estamos distantes da concretização da justiça reprodutiva na sociedade brasileira. O que temos é um quadro extremado de injustiças reprodutivas: criminalização da interrupção voluntária da gravidez por meio de grupos intitulados “pró-vida”, estupros de mulheres e meninas, violência doméstica e feminicídios… Além da Portaria nº 2.282, do Ministério da Saúde, que obriga médicos, no atendimento às mulheres que buscam os serviços de aborto legal (conforme lei vigente no país), a denunciarem o caso à autoridade policial.
As tradições religiosas, em específico o cristianismo em sua versão católica, não rara às vezes contribuíram para a injustiça reprodutiva, impondo fardos pesados às mulheres no que diz respeito à reprodução, limitando-as ao espaço doméstico e à procriação.
A teóloga feminista Mary Hunt destaca que “o trabalho feminista na religião pode ser um recurso para o entendimento da justiça reprodutiva”. Em concordância com a perspectiva apresentada por Hunt, estão as vozes religiosas progressistas feministas, que emergem dos diversos espaços religiosos. Católicas pelo Direito de Decidir, Evangélicas pela Igualdade de Gênero e Frente Evangélica pela Legalização do Aborto são alguns dos exemplos que têm trabalhado e contribuído extensamente para que a justiça reprodutiva seja, de fato, realidade na vida de inúmeras mulheres que se alimentam dos pressupostos cristãos.
No entanto, esses grupos realizam um “ativismo por meio das fissuras”, como coloca as autoras do livro “Práticas acadêmicas e políticas sobre o aborto”, de 2019. Buscam encontrar caminhos, estratégias de lutas, permanência e saídas de um ativismo dentro das possibilidades e (im)possibilidades do atual quadro do país, imerso em conservadorismos e fundamentalismos que ultrapassam o âmbito religioso e se apresentam nos campos sociais, políticos, econômicos e culturais.
Discutir justiça reprodutiva e fé é um caminho frutífero para reconhecer a diversidade do ser mulher em sua essência e alteridade. Também possibilita a abertura para o conhecimento das mais complexas realidades.
Católicas pelo Direito de Decidir
São Paulo, 28 de setembro de 2020