Por que setores conservadores do catolicismo insistem em criminalizar mulheres que recorrem ao aborto? Será que a realidade já não tem mostrado suficientemente que a criminalização não salva vidas e nem diminue o número de abortos no país? Se, efetivamente, queremos “defender a vida”, vamos ser coerentes e admitir que o discurso da criminalização do aborto só tem servido para aumentar a mortalidade materna das mulheres pobres e negras e aumentar o índice de abortos clandestinos. Serve também para fomentar o crescimento de clínicas clandestinas que atendem aquelas mulheres que podem pagar pela interrupção da gravidez.
Não se trata, portanto, de uma questão abstrata. É preciso olhar a realidade e a partir dela tomar decisões éticas. Não é ético criminalizar uma mulher que aborta e desconhecer o seu contexto. Em um país que não oferece adequadamente educação sexual, acesso a métodos reprodutivos e que não se responsabiliza pela saúde reprodutiva de todas as mulheres, criminalizar o aborto é, no mínimo, um ato de crueldade.
Vivemos em um país cheio de desigualdades, no âmbito social, econômico, racial, educacional, sexual etc. O Estado não garante o direito de mulheres pobres à saúde reprodutiva. Acabamos de presenciar um teatro de horrores no qual setores fundamentalistas religiosos não tiveram dúvidas em condenar uma menina de 10 anos estuprada pelo tio, ainda que ela estivesse claramente protegida pela lei brasileira no direito ao aborto. Difícil de acreditar que esses algozes se autodenominem cristãos. Qual é a moral que endossa tal comportamento? Em quais bases tal moral se sustenta? As normas religiosas podem nos levar a atitudes extremamente anti-éticas. E foi isso o que presenciamos.
A moral sexual religiosa não deve ser compreendida de forma dogmática. É fundamental não perdermos a criticidade e a capacidade de análise do real, frente aos ditames da moral. Se essa capacidade inexiste, há um grande risco de nos tornarmos fanáticos/as religiosos/as, que pouco têm a ver com os princípios evangélicos.
Nossa fonte de inspiração não brota das regras e normas religiosas, mas da experiência de compaixão e de amor, vivida pelos primeiros cristãos. Essa mesma experiência continua presente entre as pessoas que ainda conseguem olhar o outro, e sobretudo as outras, como pessoas que merecem viver com dignidade. Legalizar o aborto no Brasil não é uma questão secundária, é tema primordial para qualquer país que se afirme democrático.
A legalização do aborto não deve se subordinar a um debate religioso. É tarefa para o Estado, que constitucionalmente é laico. É a Constituição que oferece as bases para a garantia desse direito e não a bíblia ou qualquer outro livro religioso.
Para nós, católicas, as motivações religiosas só reforçam nossa luta pela descriminalização e legalização do aborto. É preciso reconhecer que, no interior do catolicismo, há vozes diversas, há teologias diversas. Essa pluralidade existe, ainda que o pensamento único fundamentalista queira negá-la. Encontramos argumentos para defender a capacidade ética das mulheres para tomar decisões em suas vidas e também no campo da reprodução humana. Por isso, não há nenhuma contradição entre ser católica e defender a legalização do aborto. Estamos mais uma vez unidas ao movimento de mulheres de toda América Latina neste 28 de setembro, um dia de luta.
Católicas pelo Direito de Decidir
São Paulo, 28 de setembro de 2020