Mulheres negras, latino-americanas e caribenhas: a Justiça Reprodutiva e a prática da solidariedade

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Por Jamile Godoy

Em 25 de julho, celebramos o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e, no Brasil, o Dia Nacional de Tereza de Benguela (instituído pela Lei n° 12.987/2014). Nesta data, e em todas as outras do ano, saudamos todas as mulheres negras que reivindicam o Bem Viver em suas lutas.

Na luta pelos direitos sexuais e reprodutivos, é preciso evidenciar e elucidar de modo urgente a Justiça Reprodutiva, conceito interseccional criado, defendido, promovido e reivindicado por mulheres negras. A interseccionalidade, enquanto teoria e prática ancestral criada pelas mulheres negras, revela, através da articulação analítica de gênero, raça e classe, a necessidade de descolonizar os discursos sobre saúde reprodutiva e direitos reprodutivos.

Em 1994, na Conferência sobre População e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas, no Cairo, o conceito de Justiça Reprodutiva foi definido através da articulação e do posicionamento de mulheres negras. Pouco antes, um grupo de mulheres em Chicago (EUA) se reuniu para apontar que havia distanciamentos e limitações sobre questões de acesso à saúde e direitos sexuais e reprodutivos para as mulheres negras e marginalizadas.

A popularidade do termo surge em seguida, a partir do trabalho desenvolvido pelo Coletivo SisterSong (Canção das Irmãs), que define a Justiça Reprodutiva como “decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais elevado padrão de saúde sexual e reprodutiva. Inclui também o direito de toda pessoa de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência.” (§ 7.3, do Capítulo VII, da Plataforma de Ação de Cairo).

A base principal da Justiça Reprodutiva, enquanto conceito de justiça social, é a prática da solidariedade coletiva. Ela evidencia a importância de reivindicar, discutir, refletir, dialogar e de agir para compreendermos e desenvolvermos informações e estratégias que determinarão questões que envolvem a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos. Entre outras condições principais de luta, estão a informação e o conhecimento. Com isso, quando assumido o compromisso com a Justiça Reprodutiva, estaremos nos envolvendo em pautas como a dignidade para a não violação do corpo, existência, maternidade, saúde, aborto, violência contra as mulheres, direitos, instituições e demais assuntos ligados à vida e à defesa das meninas, mulheres e de todas as pessoas que gestam.

Olhando para a conjuntura atual do país, alguns desafios se debruçam sobre a Justiça Reprodutiva, acirrados pela pandemia de covid-19. Pesquisas evidenciam os altos índices de violência doméstica; a pobreza menstrual já atinge 713 mil meninas adolescentes e jovens; o país retornou ao mapa da fome; ligadas a isso, nos deparamos com a mortalidade materna e a violência obstétrica (no parto e no abortamento). Problemas educacionais, encarcerramento em massa de jovens negros, o despejo de famílias desempregadas, o desmatamento e o ataques aos povos originários são algumas das outras problemáticas enfrentadas atualmente.

A partir de reflexões e denúncias, evidenciamos as ineficiências das instituições, dos sistemas jurídicos e de saúde, em especial no Sistema Único de Saúde (SUS), ocasionadas por representantes moralistas e fundamentalistas religiosos, que cometem discriminação de racismo, machismo, LGBTfobia e xenofobia nos atendimentos e acompanhamentos. Diante disso, como dizia Carolina Maria de Jesus, o mundo modifica para os que reagem. E Lélia Gonzalez nos direciona, dizendo “portanto, nosso lema é organização já!”

Visto que o apontamento de Justiça Reprodutiva é de cunho coletivo, é preciso somar forças e seguir com coragem, como propõe Conceição Evaristo; as mulheres negras nunca tiveram tempo para sentir medo, mesmo estando à margem e sendo vítimas dos maiores índices de violências. São elas, as mulheres negras, que lideram forças e ações, lançadas para se manterem vivas e aquilombadas.

Enquanto católicas feministas, nos somamos à luta antirracista e damos visibilidade ao Julho das Pretas que, em 2022, traz como importante tema “Mulheres Negras no Poder Construindo o Bem Viver”. O tema nos convoca para o reconhecimento, o fortalecimento e à soma na luta, em busca de identificarmos representações de poder político das mulheres, negras, jovens e LGBTQIA+, que podem garantir as forças ancestrais, intelectuais, estratégicas, tecnológicas e o Bem Viver. É preciso movimentar todos os dias a luta feminista, preta e cristã, não somente na busca de alcançar, mas também de avançar, tomando o poder para conquistar o direito de liberdade dos nossos próprios corpos, histórias e lutas.

Assim, desejamos que toda a ancestralidade sopre ventos de caminhos de luta, e apresente cada vez mais mulheres com sonhos libertários e justos. Pedimos proteção a todas as mulheres, para continuarmos fazendo história, movimentando todos os dias a luta feminista, preta e cristã. Como disse a pensadora bell hooks, o amor é uma combinação de cuidado, compromisso, conhecimento, responsabilidade, respeito e confiança. Que não nos falte. Vamos juntas. Viva todas as mulheres negras!

JAMILE GODOY é jovem, negra, estudante de Antropologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Especialista em Juventude. Educadora Social. Ativista da Rede de Jovens Católicas pelo Direito de Decidir e do Movimento de Mulheres Negras.

Referências

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.

Coletivo Margarida Alves. Guia de Defesa Popular da Justiça Reprodutiva. 2020.

KIKUCHI, Priscila. Justiça reprodutiva, decolonialidade e religião: alguns aportes teóricos para um começo de conversa. Poiesis – Revista de Filosofia, v. 23, n. 2, 2021.